by Joaquim Franco | Ago 6, 2025
Precedido por sangrentas perseguições imperiais, a transformação do “seguimento” – diversificado e tenso, como era o judaísmo no tempo de Jesus – numa estrutura eclesiástica de poder, não foi isenta de divisões. Os tempos iniciais testemunharam uma discussão acesa.
Quando Constantino deliberou, no Édito de Milão, em 313, a liberdade de culto para todos os cidadãos do império – acabando, na prática, com a perseguição dos cristãos, integrando-os no status imperial –, abriu-se também caminho à clarificação de uma evidência: se o “seguimento” de Jesus começou na pluralidade, esta seria uma contingência de todos os tempos.
Historiadores entendem a intromissão de Constantino como o primeiro passo no fim do “seguimento”, para se dar início à era de uma nova religião. O “mundo” romano, assimilando culturalmente a tradição bíblica – por sua vez influenciada pela cultura helénica, mesopotâmica e egípcia –, revogaria a tradição politeísta e assumiria o monoteísmo. Na sequência, este monoteísmo esqueceria mais tarde a sua dinâmica plural e acentuaria um desígnio teológico pontuado pela filosofia, entre a Razão e a Revelação, “Atenas” e “Jerusalém”.
Se o pensamento grego, na sua conceptualização filosófica, confrontava o Uno com o Múltiplo, problematizando e perspetivando a interrogação, a Revelação e o conceito da redenção cristã emergiram das catacumbas para fazerem o caminho de um convicto proselitismo.
Comunidades iniciais
Embora com momentos de alguma tolerância religiosa no império, pela proteção da Pax Romana, as comunidades iniciais de “seguidores” – primórdio da Igreja – passaram tempos apocalípticos. Às perseguições imperiais anteriores a Constantino, sucederam-se dissensões sobre o edifício dogmático e doutrinário. De gnósticos a blasfemos, monarquianismo a donatismo, tornara-se evidente que os bispos, as várias Igrejas por eles tuteladas e as novas comunidades cristãs não se sintonizavam.
Por razões de ordem administrativa e teológica, muitos “seguidores” de Jesus foram acusados de abandonar o “seguimento”. Textos anti-heréticos dos primeiros tempos da Igreja, demonstram a atenção dada ao problema, embora insuspeitos pensadores, como Jerónimo ou Agostinho, tenham elogiado a inteligência, o “ardor” e os “dons naturais” dos que conseguiam iniciar uma heresia. Onde se via uma perigosa ameaça, reconhecia-se também um sentido positivo. Até no posterior Édito de Milão, as controvérsias e os conflitos surgiam de forma mais ou menos localizada.
Com a liberdade de culto, as divergências alastraram-se, fragilizando o próprio império, e é neste contexto político que se dá o concílio de Niceia.
No século IV, a Igreja – mais influente a Oriente – debatia-se com um problema: como conciliar a divindade de Jesus Cristo com o dogma de fé num Deus Único?
Concílio de Niceia
O concílio de Niceia – primeiro concílio ecuménico – foi convocado em maio de 325 pelo próprio imperador Constantino para resolver uma grave crise interna na Igreja: a crise ariana. O próprio imperador, neocristão, substituiu-se ao bispo de Roma, Silvestre I [1], que não compareceu à chamada sem que tenham sido claros os motivos da recusa. Alguns historiadores defendem que era um protesto contra a convocação do encontro pelo imperador, outros asseguram que Silvestre I, em idade avançada, estava impossibilitado de viajar até Niceia, atual Iznik, Turquia. Terão participado no concílio mais de 300 presbíteros, diáconos e bispos. Silvestre I, que estaria já informado antecipadamente sobre a condenação de Ário, enviou dois representantes.
Ário defendia que Jesus Cristo não era Deus, não tinha a “mesma substância” de Deus, não teria coexistido desde toda a eternidade com o Pai. Não seria um Filho de Deus por natureza, mas um filho adotivo de Deus…
Esta doutrina era considerada por muitos bispos, uma heresia, incluindo o bispo de Alexandria, de onde era oriundo o sacerdote Ário, mas o arianismo, também graças à relatada capacidade de debate e persuasão de Ário, ganhara pujança e acabaria por dividir a Igreja entre os que acreditavam que Jesus Cristo era a segunda pessoa da Santíssima Trindade e os que acreditavam que Jesus era apenas um homem, embora a mais nobre entre as criaturas.
Entre os presentes em Niceia estava Atanásio, um diácono novo e companheiro do bispo Alexandre de Alexandria, que se distinguiu como vigoroso lutador contra os arianos. As perseguições e primeiras condenações locais à excomunhão dos arianos, anteciparam o desfecho do concílio de Niceia. Apesar do apoio inicial de influentes bispos, como Eusébio de Cesareia, historiador da Igreja, e Eusébio de Nicomédia, a doutrina de Ário foi mesmo condenada. Eusébio de Cesareia, depois de ter deixado de defender os arianos, surgiu como mediador e apresentou o Credo de Cesareia, que acabaria por se tornar a base do chamado Credo niceno. Na votação final sobre o reconhecimento da divindade de Cristo, apenas dois bispos não votaram a favor.
O concílio proclamou solenemente as bases do Credo: Jesus é “consubstancial” ao Pai – (…) Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado (…).
O triunfo da ortodoxia não seria pacífico. O arianismo prevaleceria pela mão de alguns sacerdotes, mas acabaria por se diluir. Seria anatematizado e os dois bispos que contrariaram a maioria do concílio, seriam exilados pelo imperador. A doutrina de Ário foi definitivamente abolida com a chegada ao poder do imperador Teodósio, que converteu o cristianismo em religião oficial do império, depois de Constantino iniciar a integração da Igreja no Estado, com legislação adequada e poder judicial para os bispos.
Os decretos conciliares seriam divulgados como decisões imperiais, integrando a nova religião oficial na vida política. No pensamento do imperador, o cristianismo universal ajudaria a construir um império universal.
Novo “mundo” cristão
Constantino foi o precursor de um novo “mundo” cristão e com Teodósio, o paganismo e as heresias passaram a não ser toleradas e o império, oficialmente cristão, permitiria fixar pilares na doutrina católica – universal –, embora se tenha mantido o debate sobre temas difíceis como a relação do Espírito Santo com o Filho, a chamada questão do “Filioque”, uma das causas do posterior (ano de 1054) cisma entre as igrejas do Oriente e do Ocidente.
O antijudaísmo cristão ganhou também um forte impulso no confessional império romano. Niceia foi, neste aspeto, um marco. Os posteriores concílios da Igreja acentuaram o afastamento das tradições e do calendário litúrgico judaico.
Em Éfeso, na Ásia Menor, os cristãos celebravam a Páscoa juntamente com os judeus, no 14.º dia da primeira lua [2] da Primavera [3] – 14.º Nissan [4] no calendário judaico [5] –, independentemente do dia da semana. Em Roma [6] e Alexandria [7], juntamente com outras igrejas, celebrava-se a Páscoa no Domingo subsequente ao 14.º Nissan.
Foi no concílio de Niceia que se resolveu o problema, impondo-se a celebração sempre ao domingo seguinte ao plenilúnio [8], após o equinócio [9] da Primavera. As diferenças de calendário entre Ocidente e Oriente fazem com que a vontade, entre os cristãos, de festejar universalmente a Páscoa no mesmo dia, continue hoje a não ser possível, apesar do esforço e da disponibilidade manifestada recentemente pelo Papa Francisco, como um dos objetivos do ano jubilar.
Na sequência de Niceia, ganhou forma uma questão que permanece: é legítimo um Estado confessional? É aceitável uma tão estreita ligação entre a Igreja e o Estado, ao ponto de se confundirem?
A Igreja, a liberdade religiosa e as religiões não cristãs
O clima inicial de divergência verificado em Niceia atravessa a história do ecumenismo e das relações inter-religiosas. Lumen gentium [9], Dignitatis humanae [10] ou Nostra aetate [11], são documentos que, no segundo concílio do Vaticano, iniciaram uma nova etapa.
Embora reafirmando que “a única e verdadeira religião se verifica na igreja Católica”, a teologia católica assiste a uma intensa discussão. Entre silenciamentos e incompreensões, a reação da ortodoxia balizou o debate, mas não evitou que a igreja Católica se tenha transformado numa plataforma de crítica teológica, sem preconceitos.
Francisco empenhou-se em reforçar o caminho do diálogo entre cristãos e com outras religiões, estabelecendo com as respetivas lideranças compromissos pela paz e pelo respeito, propondo “fazer coisas juntos”.
No sonho de uma ética transversal, o Papa Bergoglio desenhou um poliedro de expectativas para a experiência da fé cristã. Ao contrário de uma esfera, nem todos estão à mesma distância do centro. O “seguimento” é poliédrico e todos fazem parte do objeto.
A busca da verdade – alethea – é, hoje e sempre, a mesma que motivou as tensões iniciais. A tensão faz parte da história eclesial porque o “seguimento” de Jesus continua a ser um drama de interpretação, um bom drama de interpretação.
Se a laicidade abre espaço à possibilidade de debates com outras visões e leituras da tradição, da religiosidade e da espiritualidade, a dinâmica sinodal recria o espaço poliédrico e o tempo da oportunidade – kairos – para reavaliar o caminho e ressintonizar a Palavra com o mundo, sem amarras conciliares ou abusos de poder.
*Texto inicialmente publicado na revista Família Cristã, em 2010, e reatualizado.
[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Silvestre_I
[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Lua
[3] http://pt.wikipedia.org/wiki/Primavera
[4] http://pt.wikipedia.org/wiki/Nisan
[5] http://pt.wikipedia.org/wiki/Calend%C3%A1rio_judaico
[6] http://pt.wikipedia.org/wiki/Roma
[7] http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandria
[8] http://pt.wikipedia.org/wiki/Lua_cheia
[9] http://pt.wikipedia.org/wiki/Equin%C3%B3cio
[10] https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html
[11] https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651207_dignitatis-humanae_po.html
[12] https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html
by Júlia Costa | Jul 23, 2025
No passado dia 10, o Vaticano divulgou a mensagem do Papa Leão XIV para a celebração do 5.º Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, que se irá assinalar nas paróquias e comunidades de todo o mundo no dia 27 de julho. A mensagem tem como tema: “Bem-aventurado aquele que não perdeu a esperança” (cf. Sir 14,2), refletindo sobre o papel da esperança como fonte de alegria constante em todas as fases da vida. O Papa destaca que, ao longo dos anos, a esperança amadurece transformando-se numa verdadeira bem-aventurança.
Na sua mensagem, o Papa faz referência a várias figuras bíblicas de idade avançada que foram fundamentais para os planos divinos, lembremos: Abraão e Sara, Isabel e Zacarias, Jacó — que, já muito velho, abençoa os netos — além de Moisés e Nicodemos. O Pontífice ressalta que a compreensão do mundo e da Igreja depende da ligação entre gerações. Segundo ele, o contacto com os idosos mostra-nos que a história vai para além do presente, não se limitando a breves encontros, mas projetando-se para o futuro. “A fragilidade dos idosos precisa do vigor dos jovens”, reflete o Santo Padre, “e a inexperiência dos jovens precisa do testemunho dos idosos para projetar o futuro com sabedoria”.
Leão XIV lembra com carinho o papel dos avós, que são muitas vezes modelos de fé, de dedicação, de responsabilidade, de cidadania e de força perante as dificuldades. O Papa afirma que jamais será suficiente o nosso reconhecimento e a gratidão pelo precioso legado transmitido pelos mais velhos com amor e esperança.
Leia a mensagem completa em:
https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/messages/grandparents/documents/20250626-messaggio-nonni-anziani.html
by Júlia Costa | Jul 16, 2025
Durante o XVI Conselho Ordinário do Sínodo dos Bispos, realizado a 26 e 27 de junho, foi aprovado um novo documento destinado a orientar a fase de implementação do processo sinodal iniciado em 2021. Este documento oferece diretrizes práticas para que as Igrejas locais possam aplicar as propostas do Sínodo de forma concreta.
A Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos anunciou que o documento está disponível no seu site oficial desde segunda-feira, dia 7 de julho. Apresentado como uma “trilha de orientação”, o material visa fomentar o diálogo entre as Igrejas locais e a Secretaria, promovendo a partilha de experiências e aprendizagens.
Estruturado em quatro capítulos, o documento fornece ferramentas interpretativas para ajudar as dioceses e equipas sinodais a alinhar os seus esforços locais com a visão global da Igreja. Os dois últimos capítulos concentram-se nos critérios de harmonização e nas metodologias a aplicar.
Estas “pistas” também respondem a dúvidas recebidas pela secretaria ao longo dos últimos meses, reforçando o papel de acompanhamento e apoio que este organismo desempenha, segundo o princípio do “diálogo circular” entre as diferentes comunidades.
Durante o encontro, houve atualizações sobre o próximo Jubileu das equipas sinodais e estruturas de participação, previsto para decorrer entre 24 e 26 de outubro.
Foi também destacado o dinamismo de várias dioceses espalhadas pelo mundo, que têm abraçado a fase de implementação com entusiasmo, criatividade e um forte sentido de corresponsabilidade.
A formação dos fiéis na vivência sinodal, especialmente dos agentes pastorais, tem ganho protagonismo. Multiplicam-se as “escolas de sinodalidade”, onde se promove a escuta ativa, o discernimento conjunto e a consciência eclesial.
Os membros do Conselho receberam também informações sobre os Grupos de Estudo instituídos pelo Papa Francisco após a primeira sessão da XVI Assembleia Geral e que, com a morte de Jorge Bergoglio e a eleição de Leão XIV, tinham abrandado a sua evolução.
Ficou acordado com o novo Papa que os relatórios finais poderão ser entregues até 31 de dezembro de 2025, sendo solicitado um resumo preliminar até ao fim de junho do mesmo ano. Estes documentos serão disponibilizados no site da Secretaria Geral.
Aceda ao documento completo aqui:
https://www.synod.va/content/dam/synod/process/implementation/pathways/250102—POR-Pistas-para-a-fase-de-implementacao.pdf
by Hugo Brito | Jun 18, 2025
“E eles contaram o que lhes tinha acontecido pelo caminho e como Jesus se lhes dera a conhecer pelo partir do pão.” (Lc 24:35).
O Senhor, após a sua Ressurreição, dá-se a conhecer aos discípulos de Emaús ao partir do pão. É como se já estivesse a antecipar esta Sua solenidade. É neste episódio sobejamente conhecido que está o fundamento teológico e litúrgico desta celebração, que em Portugal tem tanta adesão.
É nesta atualização da sua Ceia, Paixão e Ressurreição que Ele revela o seu projeto para nós – que o comamos para, assim, nos tornarmos sacrários vivos!
Origem
Afinal, onde teve esta celebração a sua origem? A resposta é simples, nasceu no século XIII, mais propriamente em 1265 por ordem do Papa Urbano IV de uma necessidade de reafirmar a verdadeira presença de Cristo no pão e no vinho. Esta necessidade surgiu devido a uma heresia que defendia que a consagração era apenas um ato simbólico (algo que acontece hoje também, mas já lá vamos).
No calendário litúrgico esta é uma celebração móvel, ou seja, depende das outras solenidades. Como tudo o que é data na Igreja, esta celebração está dependente da Páscoa (afinal é daí que nascemos e para lá vamos). Da Páscoa, mais propriamente da celebração que se segue ao término do Tempo Pascal – A Santíssima Trindade (que acontece 60 dias após a festa maior da nossa fé). Assim, a solenidade do Corpo de Deus, como é vulgarmente conhecida, acontece na quinta-feira a seguir à solenidade anteriormente referida.
Porque o celebramos?
É importante celebrar esta solenidade se, afinal, celebramos a Eucaristia todos os dias? A resposta imediata é sim!
Para isso, basta que regressemos à bula que cria esta solenidade. Nela, o Papa Urbano IV, refere que “embora a Eucaristia seja celebrada todos os dias, na nossa opinião, é justo, que, pelo menos uma vez ao ano, se lhe reserve mais honra e mais solene memória” [1]. Não que Ele precise, mas nós sim… A reforçar esta ideia temos ainda o Papa Bento XVI, de boa memória, que nos diz que o mistério eucarístico “é a doação que Jesus Cristo faz de si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem”. [2]
Que sinais especiais temos?
Neste dia, a Igreja recomenda que se realize uma procissão para mostrar ao mundo a face real do Amor de Deus – um pedaço de pão (sempre os sinais, estão lembrados?).
Em Lisboa, cidade em que esta devoção é ainda assinalada, realizamos a procissão do Corpo de Deus, presidida pelo Patriarca, que termina às portas da Sé com a bênção da cidade com o Santíssimo Sacramento.
Quando estas procissões não são possíveis, pelo menos, que se possa deixar o Santíssimo exposto para adoração na custódia para que nós o façamos com toda a solenidade e devoção.
Isto ainda faz sentido?
Diria que nunca, como hoje, fez tanto sentido celebrarmos esta solenidade e vivermos (atualizarmos até) com força o que aqui celebramos. A atestar esta necessidade está uma sondagem feita pelo Pew Forum às dioceses norte-americanas, onde se perguntava aos fiéis se a presença de Cristo na hóstia consagrada é real. A resposta foi esmagadora. Cerca de dois terços dos inquiridos diziam acreditar que o momento da consagração, nada mais é do que simbólico (volvidos mais de 700 anos da bula de Urbano IV) [3].
Ora, isto faz com que se torne necessário, diria até premente, que celebremos e vivamos, de facto, a sempiterna renovação do mistério da Eucaristia nas nossas vidas. Este mistério que se vai renovando e incitando à conversão.
Em suma, nesta celebração saibamos sempre que estamos a viver o amor Dele por nós, que nasceu na criação e se estende até hoje. Saibamos, pois, reconhecer este Amor maior, primeiro, verdadeiro e total.
[1] Bula Transiturus de hoc mundo
[2] Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis
[3] Dom Robert Barron, Isto é o meu Corpo, Ed. Paulus.
by Hugo Brito | Mai 28, 2025
Ao falarmos de Maria, estamos a falar daquela que foi a portadora da Salvação, a “Theotokos”, ou seja, a mãe de Deus. É nela que ressalta a alegria do Evangelho, é nela que o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
Assim, é importante falarmos dela e da sua relevância, quer no âmbito histórico (de Portugal e da Igreja), quer de um ponto de vista litúrgico. Só assim poderemos, verdadeiramente, aferir da importância que Nossa Senhora tem para nós e para o modo como nós a celebramos, estimamos e valorizamos.
Na história de Portugal
Embora o culto mariano seja de antiga tradição em Portugal, há momentos que, ao falarmos deste assunto, importa relevar sobremaneira.
A primeira grande referência é a da promessa feita por D. João I (à data Mestre de Avis) a Maria dizendo que ia erigir um mosteiro em seu nome caso o exército português saísse vencedor. Ora, como sabemos, a Batalha de Aljubarrota foi ganha pelos portugueses e, portanto, o Mosteiro de Santa Maria da Vitória (Mosteiro da Batalha) foi erigido.
Outro episódio importante da história portuguesa relacionado com Maria deve-se ao facto de a Dinastia de Bragança não usar coroa. Isto acontece, sobretudo, porque D. João IV coroou Nossa Senhora como Rainha de Portugal e “protetora da coroa” após a Restauração. Daqui decorre que os reis portugueses não mais usassem coroa até 1910, ou seja, até ao fim da monarquia.
Acabada a monarquia seguiu-se o período da Primeira República, regime marcado pelo signo anticlerical e, concretamente, com a perseguição à Igreja. O que poderia ter vindo alterar a “relação” portuguesa com Maria foi interrompido, pois em 1917 numa pequena aldeia perto de Ourém, três pastorinhos afirmaram ter visto uma “Senhora mais brilhante do que o Sol” – começava assim a história de Fátima. Por aquela altura, a relação dos portugueses com o culto mariano atingiu níveis, diria, estratosféricos. Afinal, para um regime que era contra a Igreja, com uma população maioritariamente católica, existirem visões (erradamente chamadas aparições) da “Mãe de Deus” fez com que este acontecimento se tornasse não apenas facto religioso, mas também social e político. Aliado a isto, num país que tinha jovens a morrer na Flandres nas batalhas da Primeira Guerra Mundial, a mensagem de Fátima que nos mandava rezar pelo fim da guerra – isto deixa-nos perceber a importância deste acontecimento para o Portugal do primeiro quartel do século XX. Esta relação perdura em Portugal e no mundo e conta com a peregrinação de sucessivos Papas: desde PauIo VI a Francisco todos cá vieram.
Na história da Igreja
Falar de Nossa Senhora e não falar da sua história na Igreja é sobejamente reduzido. Assim, para podermos falar deste tema temos de começar por falar da Igreja primitiva, em Jerusalém, no século V. Lá terá começado este culto, por isso podemos apelidar a Cidade Santa como “berço litúrgico do louvor de Maria”[1]. Nela já se celebrava o dia 15 de Agosto, à época chamada festa da “Dormição de Maria”, juntamente com outras cinco festas, a saber: Nascimento de Maria (5/9), Apresentação no Templo (21/11), Parabéns à Virgem por dar à Luz o seu Filho (26/12), o Encontro com Simeão (2/2) e, por fim, a Anunciação (25/3)[2]. Com este fervor litúrgico, não é difícil adivinhar que o culto se tenha espalhado de Jerusalém por todo o Oriente, influenciando Roma, como veremos de seguida.
Em Roma existia também um culto mariano, paralelo ao de Jerusalém, sendo visível já nas celebrações, sobretudo na Oração Eucarística. Porém, é com o Concílio de Éfeso (em 431) que se fundem as tradições orientais e ocidentais, o que acontece até hoje, e é visível na piedade Católica.
A importância deste concílio foi tal que, quando terminou, o Papa Sisto III mandou erigir a terceira das basílicas papais – Santa Maria Maior, onde está o ícone Salus Populi Romani e, mais recentemente, onde está sepultado o Papa Francisco.
Juntamente com a influência de Jerusalém surgiram, no calendário litúrgico, quatro festas: Santa Maria Mãe de Deus (1/1), Purificação de Maria (2/2), Anunciação (25/3) e o Nascimento de Maria (8/9). A única que ficou excluída do culto romano foi a Apresentação de Maria no Templo.[3]
Com isto, no avançar dos séculos, muito poderíamos dizer sobre as festas de Nossa Senhora, pelo que importa ressaltar algumas delas. Na Idade Média a Visitação; nos século XVII e XVII com as festas de Nossa Senhora das Mercês e de Nossa Senhora do Monte Carmelo; no século XIX com as aparições de Lourdes, entre uma miríade de outras festas que poderíamos referir. Assim, este culto foi evoluindo e sendo alargado até à segunda metade do século XX no Concílio Vaticano II, que de seguida abordaremos.
Concílio Vaticano II
Falar do Concílio Vaticano II é falar da revolução que devolveu a centralidade do culto eucarístico, como foco da piedade cristã. Este radicalismo (da origem da palavra raiz), ou seja, ir à fonte litúrgica, veio colocar Maria em destaque, sendo referida como “Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus”. Com isto, assistimos à supressão de três memórias (Dores, Santíssimo Nome e Mercês) e duas festas passaram a ser consideradas do Senhor (Anunciação e Apresentação de Jesus no Templo). Deu-se lugar, ainda, à reorganização das festas de acordo com a sua importância[4].
Para além disso, assistimos ao surgimento do lecionário das festas de Maria, que procedeu à reorganização das respetivas leituras. É, ainda, importante referir as orações das festas marianas alteradas para introduzir referências e elementos de louvor e pedidos de intercessão da Virgem[5].
Por fim, para rematar esta reforma, S. Paulo VI, na Exortação Apostólica Marialis Cultus, indica que Maria é modelo da Igreja em variadas dimensões, como, por exemplo: oração, saber ouvir, ser mãe, ser oferente, mestra de vida espiritual e, por fim, imagem da própria Igreja.[6]
Concluindo, é importante lembrar, como diz D. José Cordeiro, que “o Ano Litúrgico celebra sempre o mesmo, isto é, o único mistério pascal de Cristo”[7]. Por isso, é importante termos sempre presente que o culto mariano não deve, melhor, não pode ser transformado em adoração, mas em veneração que exalte a dimensão da “presença permanente” da celebração dos mistérios de Cristo.
Portanto, não nos podemos nunca esquecer do que nos diz Santo Ambrósio:
“Maria é o Templo de Deus, não o Deus no Templo. Por isso só aquele que fez maravilhas no templo é digno de adoração.”[8]
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[1] A Virgem Maria na Igreja, Secretariado Nacional de Liturgia, pág. 304.
[2] A Virgem Maria na Igreja, Secretariado Nacional de Liturgia, págs. 305 e ss.
[3] A Virgem Maria na Igreja, Secretariado Nacional de Liturgia, págs. 305 a 306.
[4] A Virgem Maria na Igreja, Secretariado Nacional de Liturgia, págs. 310 e ss.
[5] Idem 3.
[6] A Virgem Maria na Igreja, Secretariado Nacional de Liturgia, págs. 352 e ss.
[7] A Virgem Maria na Igreja, Secretariado Nacional de Liturgia, págs. 296 e ss.
[8] A Virgem Maria na Igreja, Secretariado Nacional de Liturgia, págs. 299.
by Hugo Brito | Abr 16, 2025
Imaginem uma celebração que dura três dias (na verdade, quatro). Imaginem que nessa celebração cabia a totalidade celebrativa da nossa Igreja. Por fim, imaginem que nessa celebração vivemos a vida, morte e ressurreição de Cristo.
Conseguem?
Pois bem, tudo isto se concretiza no Tríduo Pascal. Nestes dias, através de sinais simples e humanos (pão, vinho, água, azeite, palavras e luz), Deus dá-se totalmente como prova da sua aliança.
Missa da Ceia do Senhor
“O sacrário deve estar completamente vazio”. É deste modo que começam as rubricas desta celebração que inicia com o modo habitual (Bênção inicial).
A celebração da Ceia é um grito de glória, que voltamos a cantar (só voltando a cantá-lo na Vigília Pascal), que termina a “travessia” quaresmal e onde celebramos a instituição da Eucaristia.
Lava-Pés
Como estamos a celebrar a Eucaristia como sacramento é aconselhável, diz o Missal Romano, que se realize o gesto do Lava-Pés à imagem do próprio Cristo, nesta mesma noite.
O sacerdote retira a casula e, tomando um jarro e uma bacia com água, lava os pés a 12 pessoas – símbolo dos 12 apóstolos.
Transladação
Não fosse este momento e o Lava-Pés e esta celebração seria “normal”. Todavia, é neste momento e gesto a realeza de Jesus – faz-se pão (primeiro sinal) por nós!
Diz o n.º 15 das rubricas desta celebração que o sacerdote “…toma o véu de ombros, pega na píxide…”, começa assim a transladação do S.º Sacramento até ao local da sagrada reserva. acompanhado de incenso (outro sinal: as orações do povo que se elevam) e velas (sempre a luz), nada mais.
A celebração termina com a deposição do SS. no local da reserva e, após se cantar o Tantum Ergo, todos se retiram em silêncio.
Celebração da Paixão do Senhor
“Hoje e amanhã, segundo uma tradição antiquíssima, a Igreja não celebra a Eucaristia” – n.º 1 das rubricas desta celebração no Missal Romano.
Este é o dia da morte de Cristo e por isso meditamos, de modo cru, neste mistério.
Nudez
O altar despido, tal como Cristo na cruz, outro sinal…
Cristo morreu! Não há festa, solenidade ou adorno. Só a certeza crua e seca desta verdade.
É isto que a Igreja celebra neste dia.
Silêncio
Depois deste momento de oração, profere uma oração, sem que para tal convoque o povo como habitualmente, ou seja, sem o “Oremos”.
Liturgia da Palavra
Como na Eucaristia escutaremos três leituras e, novamente, a leitura da Paixão (desta vez segundo S. João).
Terminado este momento, sem Credo como em quinta-feira, rezamos a Oração Universal, com dez intenções, seguida de uma oração para a terminar proferida pelo sacerdote.
Estas intenções são: pela Igreja, pelo Papa, pelos Ministros e Fiéis, pelos Catecúmenos, pela unidade dos cristãos, Judeus, pelos que não creem em Cristo, pelos que não creem em Deus, pelos governantes e pelos atribulados.
Após este momento vamos venerar e adorar a Cristo no seu trono – a cruz.
Adoração da Santa Cruz
Com o fim da Liturgia da Palavra passa-se, pois, para este momento – a apresentação da Cruz, que pode ser feita de dois modos:
– Com a Cruz destapada em procissão;
– Com a Cruz tapada que é desnudada ao chegar ao altar.
Nesse momento, respondemos à invocação “Eis o Madeiro da Cruz, no qual esteve suspenso o Salvador do Mundo”, dizendo “Vinde, adoremos”.
Chegada a Cruz ao altar, inicia-se a sua adoração. Como para a comunhão, onde somos convidados a adorar o Senhor crucificado. Aqui cantam-se os “impropérios” e outros hinos. Enquanto decorre este momento de adoração, coloca-se uma toalha sobre o altar, onde estará deposta a cruz com as velas que a acompanham e, mais tarde, o S.º Sacramento (como veremos a seguir).
Sagrada Comunhão
Colocado o S.º Sacramento que vem da reserva em cima do altar, o sacerdote inicia os Ritos de Comunhão com a oração do “Pai-Nosso”.
Segue-se, pois, a comunhão com o pão consagrado no dia anterior.
Após este momento, o SS. é devolvido ao local da reserva.
Depois, para terminar este momento, o sacerdote termina a celebração com uma oração de despedida, após a qual, este e os ministros recolhem à sacristia em silêncio.
É recomendável que a cruz fique exposta incitando o povo à oração.
Sábado Santo
“No Sábado Santo, a Igreja permanece junto do sepulcro do Senhor, meditando na sua Paixão e Morte” – é esta a entrada sobre o terceiro dia nas rubricas do Missal Romano. Podemos, portanto, concluir que é dia de silêncio e recolhimento.
Domingo de Páscoa da Ressurreição do Senhor
Vigília Pascal na Noite Santa
“A Vigília desta noite ordena-se do seguinte modo: (…) Lucernário, (…) Liturgia da Palavra, (…) Liturgia Batismal e Liturgia Eucarística” – esta é a “Missa das Missas”. Como diz o Cónego Luís Manuel, na sua obra Nascemos da Páscoa[1], é daqui que vimos e é para aqui que iremos.
É desta celebração que tudo nasce e irradia para a nossa fé.
Lucernário
Imaginem uma fogueira na rua. O povo, reunido, numa igreja às escuras e de velas na mão, esperando o Senhor. – É isto o Lucernário.
O mundo que estava nas trevas viu uma grande luz – o Ressuscitado! É deste lume novo, benzido pelo sacerdote, que acenderemos o Círio Pascal. Este círio é representação de Cristo (Luz, outro sinal), é dele que todas as velas da Igreja serão acesas; afinal é por ele que se iluminam os nossos corações.
Chegado ao altar, após ser cantado o A Luz de Cristo três vezes, anunciando a ressurreição, cantar-se-á o Precónio Pascal (hino à luz Pascal que é Cristo).
Liturgia da Palavra
Neste momento, somos chamados a meditar sobre a história do Povo de Deus, é a nossa história!
Por isso e para isso, escutamos uma seleção de nove leituras (sete do Antigo Testamento-AT e duas do Novo Testamento-NT).
Entre as leituras do AT a única obrigatória é a do Êxodo, por se tratar da narração da Páscoa judaica.
Nesta eucaristia, ao contrário das “habituais” temos um ritmo próprio. Cada leitura tem um salmo e orações próprias.
Na passagem das leituras do AT para o NT cantamos o “Glória” (momento em que se acendem as velas do altar – Cristo ressuscitou!).
Entre leituras do NT, Epístola e Evangelho, cantamos o Aleluia (ele próprio um Salmo). Neste Evangelho não se utilizam velas para o acompanhar, afinal estamos na presença do Círio, que deve ser colocado num de três lugares: junto ao ambão, junto à fonte batismal ou no meio do presbitério, representação da Nossa Luz – Jesus Cristo.
Liturgia Batismal
Chegado a este momento, o presidente da celebração dirige-se para a fonte batismal e procede à bênção da água. Pedimos o auxílio dos santos que connosco celebram, na Igreja da Glória, através das Ladainhas.
Bênção da água batismal
Terminadas as Ladainhas, o presidente da celebração procede à bênção da água mergulhando o Círio Pascal nas águas:
“O Espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gn1, 2-3).
Só depois da bênção das águas, o povo, de velas nas mãos, renova as suas promessas batismais a que se sucede a aspersão, num sinal de recordação do batismo.
Segue-se a Oração Universal para concluir este momento.
Liturgia Eucarística

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A partir deste momento retoma-se o ritmo de “missa habitual”, ou seja, o rito não sofre alterações. No entanto, vivêmo-lo na certeza renovada de que o Senhor está vivo!
Ritos de Conclusão

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Esta celebração termina com a despedida, como de costume, porém pode ser feita a bênção solene prevista, terminando com: “Aleluia, Aleluia!”
É com este grito de aleluia que terminam as três celebrações, que, como disse, são uma unidade. Nelas se engloba toda a beleza, o amor e a alegria da nossa fé, que se deve viver na oitava como se de um único dia se tratasse.
É com esta certeza de uma fé viva, na presença de um “Senhor vivo” que se relaciona connosco que devemos sempre caminhar. Afinal, referindo novamente as palavras do Cónego Luís Manuel: “Vivemos de Páscoa em Páscoa, até à Páscoa final!”
Hugo Brito
[1] Cón. Luís Manuel Pereira da Silva, (2021). Nascemos da Páscoa. O memorial do mistério pascal. Secretariado Nacional de Liturgia.