Iniciei o meu percurso na Paróquia da Amadora com 10 aninhos na catequese, vinda de uma infância na Reboleira. Fiz o Crisma e pertenci ao grupo de leitores da missa das 10h. Mais tarde, tornei-me catequista, passei a coordenar o grupo de leitores a que pertencia e integrei o grupo bíblico. Sentava-me muitas vezes sozinha em frente à imagem de Nossa Senhora da Conceição para conversar com ela.
Quando terminei o curso e me tornei professora, não foi diferente. Eu e todos os meus colegas, naquele 1 de setembro de 2004, fomos inscrever-nos ao Centro de Emprego, porque não tínhamos conseguido colocação no concurso nacional de professores. Naquela altura, o sistema estava sobrecarregado ao contrário de hoje em que existe muita falta de profissionais qualificados. Saí do Centro de Emprego e fui à nossa igreja conversar com a Mãe. Nessa conversa, entreguei-me a Ela. “Mãe, a minha paixão é o ensino, mas seja feita a Tua vontade. A minha vida entrego nas Tuas mãos e sigo o que escolheres para mim.” Dois dias depois, toca o meu telemóvel. A minha orientadora da Faculdade de Letras diz-me que tem um convite para mim. “Sofia, o Instituto Camões pediu-me dois professores para irem para Timor. Pensei na Sofia. Aceita?” Lembrei-me da minha conversa com a Mãe. Seja feita a Tua vontade, pensei. Aceitei de imediato.
Passados dois meses e todos os trâmites contratuais e da viagem, despedi-me da família, que ficou com o coração apertado, e parti para Díli, Timor-Leste, tinha eu 24 anos de idade. No aeroporto, foram buscar-nos e disseram-nos que teríamos de ir de imediato para uma reunião com a coordenadora no bairro dos professores ao lado da Catedral de Díli. O carro parou em frente à Catedral e desci. Li o que estava na lateral do portão de entrada: “Catedral de Díli – Paróquia Imaculada Conceição de Nossa Senhora”.
Caíram-me as lágrimas. Percebi naquele momento que, mais do que uma oportunidade profissional, tinha recebido uma missão pessoal. E foi sempre assim que me vi em Timor-Leste: fui para servir os alunos, os professores timorenses, a comunidade, os que mais precisavam. Sempre e de todas as formas que me fosse possível, mas sempre com a minha/nossa Paróquia no pensamento.
Cheguei a Timor-Leste a 16 de novembro de 2004, dois anos após a restauração da independência. O país estava completamente destruído, queimado, no chão, pois o cenário de guerra tinha sido interrompido há muito pouco tempo. O calor intenso e húmido intensificava os cheiros e entranhava-se na pele. Como alguém disse: primeiro estranha-se, depois entranha-se. Mas em Timor, naquela altura, faltava tudo. Foi um choque e também uma grande aprendizagem para mim. Aquilo que, em Portugal, assumimos como adquirido não o era em Timor. A água que sai quando rodamos a torneira, a luz que acende ao carregarmos no interruptor, a comida fresca e sempre ao dispor no supermercado e no frigorífico, os serviços de saúde sempre ao dispor… Enfim, em Timor, nada disso era certo. Para os estrangeiros, mesmo assim, era menos mal. Havia geradores e havia capacidade financeira para cobrir as necessidades básicas, embora na altura os bens fossem poucos mesmo para serem comprados.
Quando comecei a circular pela cidade na minha bicicleta, percebi que, de facto, as pessoas eram extremamente pobres. Havia a questão do lixo, da poeira numa cidade destruída, das parcas condições sanitárias, das casas muito precárias à imagem dos bairros sociais há uns anos na Amadora. Faltava tudo. Crianças muito pequenas caminhavam distâncias muito grandes para encherem jerricãs com água da ribeira mais próxima. Precisavam de ajudar a família, pois a mãe e o pai normalmente estavam na lida da casa, dos animais e do campo e à espera daquela água minimamente potável para cozinhar, lavar a roupa, dar banhos ou lavar a loiça. Nas áreas rurais e remotas, o problema da água era exponencialmente pior e as distâncias maiores. Aí faltava tudo, tudo, tudo.
Também para irem para a escola, as crianças tinham de andar por vezes 3 horas para cada lado, mas sempre com um sorriso de orelha a orelha e na esperança de aprenderem sempre mais e mais, apenas com um caderno e um lápis oferecidos por uma qualquer ONG. Cheguei a ter aulas com 120 alunos no início. Cheguei a ter alunos a desfalecerem-me na aula, porque não tinham como fazer uma refeição antes de virem para as aulas. Nas escolas básicas de Timor-Leste, a merenda escolar (normalmente arroz com feijão e alguma verdura) é para muitos a única refeição do dia e só se conseguiu implementar dez anos depois no currículo nacional que também ajudei a construir.
Os timorenses, quando cheguei, tinham na sua quase absoluta totalidade uma vida muito dura e eu sentia-me pequenina por achar que vinha de um meio com “problemas”. Aprendemos em Timor-Leste a relativizar as questões, a apreciar o minimalismo da vida, tão no centro da vida de S. Francisco de Assis, e a dar importância ao que realmente importa: os sentimentos, o espírito de união entre as pessoas, a família e a vivência em comunidade. Apesar de lhes faltar tudo, tudo, tudo, não são pobres na fé e na alegria com que a vivem. Entregam-se completamente ao Senhor e n’Ele confiam, o que nos leva a refletir sobre como vivemos a nossa própria fé, nós os filhos do privilégio que tudo pomos em questão. Vim para ensinar, mas fui eu que aprendi mais. Vim para servir, mas sinto que fui servida em tudo o que é essencial ao coração e ao espírito.
(No topo do Monte Ramelau, com Nossa Senhora Rainha do Ramelau.
No tempo de domínio português, o ponto mais alto de Portugal.)
Aqui desconstruí uma família e formei uma nova. Eu e o meu marido Vítor temos duas meninas lindas, a Leonor e a Isabel, a quem só peço que tenham um bom coração, recetivo, acolhedor e ao serviço dos outros. As obras de misericórdia lembram-nos isso mesmo: são verbos de ação. O objeto nessas frases não é discriminado. Fazer o bem sem olhar a quem. Somos imigrantes num país que nos acolheu sempre com um sorriso e com os braços abertos. Não nos sentimos timorenses, somos portugueses, mas Timor sempre nos fez sentir em casa, sempre nos fez sentir em paz. Crescemos muito ao nível pessoal e profissional. Somos muito gratos por tudo e por tanto. Timor ocupa um lugar muito querido no nosso coração.
Que no nosso país saibamos estender também a mão ao próximo com verbos de ação fraterna, sem olhar a quem for o objeto da nossa ação. Somos todos filhos de um mesmo Pai, que nos ama como somos. Os limites das nossas fronteiras foram impostos essencialmente por entidades políticas, mas, como seguidores de Cristo, as nossas fronteiras são as bordas do nosso coração e esse transborda nas pontes que construímos com e ao encontro dos outros.
Em novembro, completei vinte anos de Timor-Leste. Estive ao serviço, tenho sentimento de missão cumprida e sei que deixo o meu legado, o meu contributo na formação de recursos humanos, essencialmente na educação e na língua, e na criação de muitos recursos didáticos e linguísticos para a educação das crianças e para a formação de professores de Timor-Leste, que sempre mereceram o meu carinho, tal como Xanana Gusmão sempre me pediu que considerasse.
Estou a meio da minha carreira profissional e iniciei uma reflexão sobre o que Nossa Senhora da Conceição espera de mim e do meu serviço daqui para a frente. No início deste ano, eu e o meu marido comprámos uma casa em Portugal, numa zona do Alentejo mais tranquila, e botei-me à conversa com Ela. Mais uma vez Lhe disse: “Seja feita a Tua vontade. A minha vida entrego nas Tuas mãos e sigo o que escolheres para mim.” Vários fatores se conjugaram para que o nosso regresso a Portugal acontecesse agora no verão de 2025. A minha filha mais velha, Leonor, disse-me que gostaria de frequentar a catequese em Portugal. Comecei a pesquisar a paróquia que serve a zona onde comprámos casa e descobri que é também Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Entendi que estou nos Seus caminhos e que, ao completar 45 anos de idade, preciso agora de estar ao serviço do meu país.
O plano divino é sempre o melhor e maior de todos. Que saibamos abrir as nossas vidas ao serviço e acolhê-lo no âmago do nosso coração! Deus nunca nos abandona ao longo do caminho, qualquer que seja o destino que tem reservado para nós, mesmo que seja assim, quase no fim do mundo.
Sofia Santos
(Texto e fotos)
Díli, Timor-Leste
11 de junho de 2025