O dia seguinte

O dia seguinte

Sou de uma geração que cresceu com a ideia de que “importa aproveitar o dia”. Cruzei-me, ainda muito adolescente, com O Clube dos Poetas Mortos e deixei trabalhar no meu coração a ideia da liberdade que experimenta quem se deixa abraçar por tudo o que cada dia tem para oferecer. Revisitei este clássico há pouco tempo na companhia da minha filha mais velha e, tantos anos depois, de coração mais trabalhado, continua a fazer sentido, talvez até mais sentido, tendo em conta a companhia.

Efectivamente, a vida tem-me ensinado que importa realmente aproveitar o dia! Mas, ao mesmo tempo que me responde “este é o dia”, “hoje pode ser o dia”, “não há outro dia como hoje”, a vida também me pergunta “e amanhã?”.

Somos formatados para celebrar… somos igualmente formatados para sofrer… aprendemos que é suposto celebrar os dias bons e chorar os dias maus… mais, é do conhecimento geral que não só é bom como é terapêutico celebrar o que é feliz e chorar o que é triste. E eu concordo! Acredito que vivemos melhor se celebrarmos tudo e chorarmos tudo. Acredito que vivemos melhor se sentirmos tudo.

Portanto, sim. Importa viver o dia. Todo o dia. Tudo no dia. Mas e o dia seguinte? Como viver o dia seguinte?

Ensinaram-nos a chorar de alegria e a gritar até ficar sem voz quando o nosso clube ganha um campeonato. Mas ninguém nos explicou como fazer face à cefaleia do dia seguinte. Ensinaram-nos a abraçar a alegria salvífica de um concerto, um filme, um bailado. Mas ninguém nos avisou que ela é limitada no tempo e afinal não nos salva para a eternidade. Ensinaram-nos a eternizar na memória as sensações de uma viagem marcante ou de uma experiência de fraternidade. Mas ninguém nos alertou para o regresso à monotonia do quotidiano. Ensinaram-nos a compreender a taquicárdia do nosso coração e a resistência do nosso corpo aquando do nascimento de um filho. Mas ninguém nos preparou para a resiliência das décadas que se seguem.

Paralelamente, ensinaram-nos a aceitar o silêncio da notícia da morte de alguém que amamos. Mas ninguém nos disse o que fazer com ele no meio do barulho do dia seguinte. Ensinaram-nos a lidar com a frustração de um divórcio. Mas ninguém nos explicou como a ajustar às expectativas de todo um projecto que afinal não aconteceu. Ensinaram-nos a racionalizar a ausência de alguém que parte para longe. Mas não nos disseram onde encaixar a saudade que permanece irracionalmente.

De facto, porque é que o mundo permanece aparentemente imutável no dia seguinte a um grande acontecimento nas nossas vidas? Como é possível que o trânsito continue infernal às sete e trinta da manhã, que a televisão continue a passar os mesmos programas da tarde, que as pessoas continuem a manter as mesmas conversas ao jantar?! Porque é que o mundo inteiro não se alegra abundantemente ou chora de forma incessante connosco?!

Na verdade – e esta é uma verdade um bocadinho cruel – a vida continua a acontecer absolutamente indiferente às nossas alegrias e às nossas dores. E, na verdade – outra um bocadinho cruel –, não poderia ser de outra maneira. Porque cada um de nós é apenas um grão de areia na imensa praia que é o mundo e nunca um grão de areia poderia impor o seu ritmo único ao movimento das marés.

Dito isto, acho que devemos ensinar os nossos filhos exactamente como nos ensinaram a nós – a viver o dia. Todo o dia. Tudo no dia. Sem medo do que as emoções possam rasgar em nós. Mas creio que devemos acrescentar o seguinte – só faz sentido viver os dias intensamente se formos capazes de transportar para os dias normais a força regeneradora destes momentos. Até porque que mais é a vida se não um sem fim de dias normais intercalados com uns quantos dias verdadeiramente extraordinários?

Ensinemos isto aos nossos filhos. Este Carpe Diem, não da urgência de viver o agora sem sentido, mas um agora que se projecta para o que está para vir. Ensinemos aos nossos filhos que tudo o que verdadeiramente importa permanece no tempo e, quase sempre, nas coisas comuns. E, sobretudo, ensinemos aos nossos filhos que nós próprios também ainda estamos a aprender.

 

Ana Sofia Vaz
Junho, 2025

 

 

«E vós, quem dizeis que Eu sou?»

«E vós, quem dizeis que Eu sou?»

Pedro, em nome da comunidade dos discípulos, proclama a fé de todos em Jesus, Messias e salvador, o Filho que Deus enviou ao mundo para apresentar aos homens uma proposta de vida eterna e verdadeira. A Igreja assenta nesta fé e constrói-se a partir desta fé. A Igreja de Jesus é uma comunidade de discípulos reunida à volta de Jesus (“o Messias, o Filho de Deus vivo”), que vive da escuta de Jesus, que se alimenta de Jesus, que caminha incondicionalmente atrás de Jesus e que dá testemunho no mundo da proposta que Jesus deixou. Jesus é a grande referência das nossas vidas e ocupa o centro da nossa comunidade cristã?
É n’Ele que assenta a nossa fé? Estamos completamente disponíveis para o escutar, para acolher as suas indicações, para o seguir no caminho que Ele nos aponta? 

In site dos Dehonianos

A caravela!

A caravela!

Estava esta tarde na praia a admirar a sua cor.
Uma das primeiras tardes de verão do ano.
O ruído das ondas, pequenas, misturado com o dos veraneantes, criava um som de fundo indistinto.
No horizonte a réplica de uma caravela seguia lentamente em direcção ao alto mar.
Subitamente o riso de duas crianças trouxe-me de volta à realidade.
Rodeadas de centenas de outras pessoas, indiferentes, estes petizes desceram, qual Alice pela toca do coelho, ao seu mundo escondido de aventuras.
Perante o cenário do mar imenso, descobriram, num canto da praia, um pequeno córrego de água doce cristalina.
O ribeiro, permitam-me este exagero literário, não era nem longo nem fundo.
Três ou quatro metros de córrego que, saindo de umas rochas, rapidamente desaparecia no areal.
No entanto, as crianças não de detiveram a questionar nem a origem, nem a pequenez, nem o destino.
Simplesmente desfrutaram daquela água que lhes era oferecida pela natureza.
Tal a força da alegria da sua descoberta que em breve outras crianças se lhes juntaram.
Ao fim de poucos minutos uma pandilha de quase uma dezena deles ficaram a pular, a rebolar e a rir naquele cantinho da praia.
Os primeiros não questionaram a presença dos recém-chegados.
Uns maiores, outros menores.
Uns mais velhinhos, outros recém-saídos do colo.
Ninguém se arrogou o direito da descoberta.
Ninguém usou a sua maior força ou capacidade para obter um mililitro de água adicional.
A água, que não era de ninguém, por todos foi usada livremente, a todos serviu e a nenhum faltou.
Não foram precisos outros brinquedos, bolas, pás e ancinhos ou bóias.
Todos esses acessórios ficaram perdidos no areal.
Inúteis.
Era água, simples água.
Eram crianças, simples crianças.
Quem precisa de mais para ser feliz?
Um pai mais temeroso recomendava ao seu filho que não bebesse daquela água. Cumpridor, o malandreco, limitava-se a encher a boca para a transportar para onde aquela fazia falta à aventura.
Perante esta cena o mar perdeu a sua grandiosidade.
Ali, naquele momento, se explicou, caso disso houvesse necessidade, a opção de Cristo pelas crianças.
Reconhecem, aceitam e partilham.
Não complicam.
Não acumulam.
Não escondem.
Ah se a Boa Nova tivesse sido mantida apenas na mão das crianças…
Entretanto a caravela já tinha desaparecido.
Que tenha tido uma boa viagem!