CRÓNICAS & OPINIÃO

Nascida e criada na Amadora, Ana Sofia tem 42 anos. É enfermeira de profissão e mãe de três jovens adolescentes. Dos seus 42 anos, 30 têm sido com um pé na paróquia e desses, 10 diretamente ligados à pastoral juvenil.  

O dia seguinte

30/06/2025

Sou de uma geração que cresceu com a ideia de que “importa aproveitar o dia”. Cruzei-me, ainda muito adolescente, com O Clube dos Poetas Mortos e deixei trabalhar no meu coração a ideia da liberdade que experimenta quem se deixa abraçar por tudo o que cada dia tem para oferecer. Revisitei este clássico há pouco tempo na companhia da minha filha mais velha e, tantos anos depois, de coração mais trabalhado, continua a fazer sentido, talvez até mais sentido, tendo em conta a companhia.

Efectivamente, a vida tem-me ensinado que importa realmente aproveitar o dia! Mas, ao mesmo tempo que me responde “este é o dia”, “hoje pode ser o dia”, “não há outro dia como hoje”, a vida também me pergunta “e amanhã?”.

Somos formatados para celebrar… somos igualmente formatados para sofrer… aprendemos que é suposto celebrar os dias bons e chorar os dias maus… mais, é do conhecimento geral que não só é bom como é terapêutico celebrar o que é feliz e chorar o que é triste. E eu concordo! Acredito que vivemos melhor se celebrarmos tudo e chorarmos tudo. Acredito que vivemos melhor se sentirmos tudo.

Portanto, sim. Importa viver o dia. Todo o dia. Tudo no dia. Mas e o dia seguinte? Como viver o dia seguinte?

Ensinaram-nos a chorar de alegria e a gritar até ficar sem voz quando o nosso clube ganha um campeonato. Mas ninguém nos explicou como fazer face à cefaleia do dia seguinte. Ensinaram-nos a abraçar a alegria salvífica de um concerto, um filme, um bailado. Mas ninguém nos avisou que ela é limitada no tempo e afinal não nos salva para a eternidade. Ensinaram-nos a eternizar na memória as sensações de uma viagem marcante ou de uma experiência de fraternidade. Mas ninguém nos alertou para o regresso à monotonia do quotidiano. Ensinaram-nos a compreender a taquicárdia do nosso coração e a resistência do nosso corpo aquando do nascimento de um filho. Mas ninguém nos preparou para a resiliência das décadas que se seguem.

Paralelamente, ensinaram-nos a aceitar o silêncio da notícia da morte de alguém que amamos. Mas ninguém nos disse o que fazer com ele no meio do barulho do dia seguinte. Ensinaram-nos a lidar com a frustração de um divórcio. Mas ninguém nos explicou como a ajustar às expectativas de todo um projecto que afinal não aconteceu. Ensinaram-nos a racionalizar a ausência de alguém que parte para longe. Mas não nos disseram onde encaixar a saudade que permanece irracionalmente.

De facto, porque é que o mundo permanece aparentemente imutável no dia seguinte a um grande acontecimento nas nossas vidas? Como é possível que o trânsito continue infernal às sete e trinta da manhã, que a televisão continue a passar os mesmos programas da tarde, que as pessoas continuem a manter as mesmas conversas ao jantar?! Porque é que o mundo inteiro não se alegra abundantemente ou chora de forma incessante connosco?!

Na verdade – e esta é uma verdade um bocadinho cruel – a vida continua a acontecer absolutamente indiferente às nossas alegrias e às nossas dores. E, na verdade – outra um bocadinho cruel –, não poderia ser de outra maneira. Porque cada um de nós é apenas um grão de areia na imensa praia que é o mundo e nunca um grão de areia poderia impor o seu ritmo único ao movimento das marés.

Dito isto, acho que devemos ensinar os nossos filhos exactamente como nos ensinaram a nós – a viver o dia. Todo o dia. Tudo no dia. Sem medo do que as emoções possam rasgar em nós. Mas creio que devemos acrescentar o seguinte – só faz sentido viver os dias intensamente se formos capazes de transportar para os dias normais a força regeneradora destes momentos. Até porque que mais é a vida se não um sem fim de dias normais intercalados com uns quantos dias verdadeiramente extraordinários?

Ensinemos isto aos nossos filhos. Este Carpe Diem, não da urgência de viver o agora sem sentido, mas um agora que se projecta para o que está para vir. Ensinemos aos nossos filhos que tudo o que verdadeiramente importa permanece no tempo e, quase sempre, nas coisas comuns. E, sobretudo, ensinemos aos nossos filhos que nós próprios também ainda estamos a aprender.

 

Ana Sofia Vaz
Junho, 2025