O Live Aid aconteceu há 40 anos

Quando a música e a solidariedade se cruzaram
Imagem ©Georges De Keerle — Live Aid, Wembley Stadium, 1985

“Quem é que te vai avisar que é demasiado tarde?
Quem é que te vai dizer que as coisas não estão assim tão bem?
Não podes continuar a pensar que não se passa nada de errado…”

Foram palavras como estas, numa tradução livre para português, que, faz hoje precisamente 40 anos, muitos milhões de pessoas em todo o mundo ouviram, ao vivo ou através da rádio ou da televisão, enquanto assistiam, chocados e incrédulos, à dura realidade de crianças africanas dizimadas pela fome, concretamente na Etiópia, apresentada num vídeo de que David Bowie apenas dissera falar por si.

Era o dia 13 de julho de 1985 e estava a decorrer o Live Aid, por muitos considerado o concerto mais bem-sucedido da história, pelo menos em termos de angariação de fundos e de quantidade de celebridades participantes, em dois estádios de continentes diferentes, separados pelo oceano Atlântico – Wembley, em Londres, Inglaterra, e J. F. Kennedy, em Filadélfia, nos Estados Unidos da América –, mas com um objetivo comum: combater a fome em África.

© Electric Factory Concerts – Live Aid no JFK Stadium, Filadélfia

A melancolia e a ternura da voz de Ben Orr, do grupo The Cars, que cantou Drive [1], combinadas com as imagens chocantes de crianças famintas, junto dos seus pais, igualmente famintos e impotentes, criaram um efeito emocional devastador no público. A letra, embora não fosse originalmente sobre a fome, ganhou um novo e poderoso significado no contexto das imagens, alertando, todos os que as viam, para uma realidade desconhecida por muitos que, a partir daquele momento, não podiam fazer de conta que ignoravam.

Imaginado por Bob Geldof, vocalista do grupo The Boomtown Rats, que, meses antes, em dezembro de 1984, já conseguira, com Midge Ure, do grupo Ultravox, mobilizar o mundo pop britânico e irlandês para a gravação do single de beneficência Do they know it’s Christmas? [2], em resposta a uma reportagem que tinha visto na BBC sobre a fome na Etiópia e que o tinha impressionado e inquietado, o Live Aid durou cerca de 16 horas, ao longo das quais mais de 58 bandas foram atuando ao vivo, perante cerca de 170.000 pessoas, presentes em Londres e Filadélfia, num espetáculo transmitido ao vivo para mais de 100 países em todo o mundo, através de 13 satélites, com uma assistência calculada em cerca de dois biliões de pessoas.

Tendo sido um acontecimento inesquecível e irrepetível, que angariou mais de 245 milhões de dólares para as vítimas da fome em África, provenientes da venda de bilhetes e dos donativos recolhidos, e que se tornou uma referência na forma como a música se pode conjugar com causas sociais e humanitárias, o Live Aid, para além de ter marcado, talvez pela sua dimensão utópica e sonhadora, todos os que a ele assistiram na sua juventude, reuniu atuações notáveis, como a dos Queen e a dos U2, mas a música Drive, a tocar em segundo plano, como banda sonora, ganhou um simbolismo especial por ter ajudado a expor a realidade brutal da fome na Etiópia a uma vasta audiência que, de outra forma, não teria total noção da dimensão da catástrofe, ampliando a mensagem humanitária e estimulando a ajuda global.

Hoje, quatro décadas passadas, a guerra e a fome continuam a dizimar tantas crianças inocentes: seremos ainda capazes de nos unirmos ao seu sofrimento e assumirmos gestos solidários, ou tornámo-nos impermeáveis e conseguimos “continuar a pensar que não se passa nada de errado…”?

 

Fontes:
[1] The Cars – Drive (CBC Ethiopian Famine Film): https://youtu.be/9xIpHNd3hjU
[2] https://www.youtube.com/watch?v=RH-xd5bPKTA
[3] Artigo da Radio 2 – BBC sobre o Live Aid: https://www.bbc.co.uk/programmes/articles/5g4RC43bXFWqVLD9RCcqCYW/remembering-1985-the-year-of-live-aid-eastenders-madonna-whitney-back-to-the-future-the-sinclair-c5-and-much-more