Do «dar a outra face» à tolerância permissiva

Do «dar a outra face» à tolerância permissiva

Como falar de Amor num mundo que não compreende essa linguagem?

Esta é talvez uma das mais fundamentais perguntas da minha existência e tem-me atormentado um bocadinho mais nos últimos tempos.

Passei a minha vida inteira a acreditar que a força que move o mundo é o Amor. Sempre afirmei que a única coisa de que as crianças precisam para crescer saudáveis é serem amadas – quem partilha a vida comigo já ouviu isto centenas de vezes. Sou cristã. Portanto, houve um momento da minha vida em que me encontrei com Jesus. E, por isso, sempre soube – aliás, sei – que quem ama e, sobretudo, quem se sabe amado, tem tudo. Porque tudo o resto vem por acréscimo. Sempre senti que a única coisa essencial para a salvação da Humanidade reside na capacidade de amar. Mas… terá a Humanidade perdido esta capacidade? Estará o Amor em vias de extinção?

A verdade é que, depois de quarenta e dois anos fragilmente alicerçados no Amor – sim, porque o Amor é forte, mas frágil, claro! E não podia ser de outra maneira! –, de repente houve uma noite, no rescaldo de umas eleições legislativas, em que me assustei com o meu país. E depois lembrei-me que houve outra noite, no rescaldo de umas eleições presidenciais, em que assustei com o mundo. E não consegui deixar de me lembrar, no rescaldo de uma invasão territorial de um estado soberano, do quanto me assustei com a Europa. E por aí adiante… lembrei-me que me assusto com o mundo sempre que o assunto é imigração, direitos das mulheres e das crianças, acesso à educação e à saúde, distribuição da riqueza, proteção dos velhos, participação política e abstenção… tenho-me vindo a assustar com o mundo e tenho continuado a acreditar que o Amor basta… mas bastará? O mundo não estará assim tão assustador também por minha culpa? Este Amor que conheci e em que tenho tentado alicerçar a minha vida, nesta demanda por «dar a outra face» não se terá traduzido numa tolerância demasiado permissiva em terreno fértil para os que semeiam tudo o que me assusta? Como falar de Amor num mundo que não compreende essa linguagem?

É claro para mim que, por Amor, às vezes devemos calar. Mas também é claro que, sendo o Amor uma força de ação, só pode em determinadas circunstâncias, obrigar-nos a gritar bem alto! Aliás, não é a Cruz uma forma de luta? Não será o Calvário, a Paixão, a maior imagem do Amor em luta por um mundo melhor? Que precisamos de lutar contra tudo o que é assustador no mundo, é claro! A questão é: quem somos nós nesta batalha? Somos João, no seu silêncio amoroso e persistente, que é ensurdecedor pela forma como permanece sempre, apesar de tudo, em imediata resiliência, esperança, estoicismo e compromisso com o Amor? Ou somos Pedro, na revolta interior que o conduz à luta, no medo que o leva à traição, mas também no arrependimento que lhe apresenta o perdão, em posterior resiliência, esperança, estoicismo e compromisso com o Amor? Quem somos nós nesta batalha? Porque me parece óbvio que a frente de batalha é inevitável!

Sempre amei História! Aliás, acho que se as pessoas todas amassem História, o mundo seria um lugar menos assustador! Porque, quem ama História tem memória do passado e trabalha no presente para não repetir erros antigos no futuro. Dito isto, quando folheamos os livros de História, lemos acerca de períodos importantíssimos da vida da Humanidade e comovemo-nos com os relatos dos homens e mulheres desse tempo e dos feitos heroicos e impactantes para o seu futuro, que é o presente que hoje vivemos. Às vezes parece distante, mas não é. Porque nos ensina! Não estaremos nós a viver um desses períodos históricos em que somos nós os atores principais? Claramente, temos uma responsabilidade relativamente ao nosso presente e ao nosso futuro, que virá a ser, algures no tempo, o presente dos nossos filhos e dos filhos dos nossos filhos e dos filhos dos filhos dos nossos filhos. Em que parágrafo dos livros de História do futuro queremos que se inclua o nosso nome? Isto questiona-me muito. Porque se o que verdadeiramente importa no fim da minha vida é que ela tenha cumprido o seu propósito e esse propósito é apenas que se gaste com o mundo e com os outros, então o parágrafo em que eu quero que o meu nome se inclua não pode ser mudo nem imóvel, nem passivo. Tem que ser música e barulho e dança e movimento e discussão e ação, mas não pode ser guerra. Só pode ser Amor. E mais uma vez, como? Como falar de Amor num mundo que não compreende essa linguagem?

Acho que tenho muito a aprender sobre a forma como comunico. Ao longo dos anos, talvez tenha sido ingénua, romântica – como alguns dos meus amigos adorariam agora dizer-me! Pensei sempre que, apesar de tudo, no meio do caos, se me mantiver fiel aos meus valores e se tentar compreender o «outro lado», numa espécie de construção de pontes versus construção de muros, tudo haveria de se consertar, mas não resultou. E não estive sozinha! Houve muitos a pensar e a agir exatamente como eu! Mas não resultou. E o mundo é hoje um lugar mais assustador porque nós não soubemos comunicar. A luta foi-se fazendo com instrumentos que nós não conhecíamos e em trincheiras que nunca imaginámos que o seriam.

Atenção! Não vou terminar este artigo na desesperança! Pelo contrário! Continuo a acreditar em tudo o que afirmei anteriormente. Continuarei a querer sempre construir pontes em vez de muros. Continuarei sempre a publicitar o Amor. E, sobretudo, continuarei sempre a ter esperança na Humanidade. Terei é de descobrir outras formas mais eficazes de o viver. Tenho de dar uma nova roupagem ao Amor. Perspetivar a Cruz de uma outra forma. Para que o mundo a veja como eu.

Bom, é suposto isto ser um artigo de opinião, mas defrauda um bocadinho, porque é muito mais perguntas que respostas ou afirmações. Peço desculpa. Não tenho, de facto, grandes respostas para a minhas – e talvez as de muitos outros – inquietações. Mas sei uma coisa: um cristão, que o é não por ideologia, mas porque se encontrou verdadeiramente com Jesus, nunca compreenderá ou validará teorias que opõem o «nós» aos «outros», que «arrumam» pessoas em barricadas inimigas, que promovem comportamentos que põem em causa a dignidade humana, que publicitam uma cultura do medo, que rotulam, catalogam e hierarquizam pessoas, seja por que motivo for. Porque a qualquer uma dessas teorias, Jesus respondeu com a Cruz – essa imagem frágil, mas tão poderosa e transformadora do mandamento do Amor.

 

Temos uma vivência religiosa presa a leis que balizam tudo ou uma religião de amor e tolerância?

Temos uma vivência religiosa presa a leis que balizam tudo ou uma religião de amor e tolerância?

Muitas pessoas estão mais à vontade com definições claras, objetivas e seguras; mas não se sentem tão à vontade no campo nem sempre bem balizado da consciência e do coração. Têm medo do imprevisto, do que é novo e diferente, daquilo que não é claramente “branco” ou “preto”. Por isso, sentem necessidade de leis que lhes digam, sem margem para dúvidas, o que devem fazer e o como devem viver. Preferem que seja outra pessoa – talvez até o padre – a pensar por elas, a decidir por elas, a dizerem-lhe o que está certo e o que está errado. Escondem-se atrás de leis e sentem-se de consciência tranquila porque descarregaram a sua responsabilidade nas leis. As leis são a sua salvaguarda, as leis definem o seu caminho, as leis são uma proteção segura para lidar com aquilo que as ultrapassa. Vivem a religião das leis. Se transgredirem as leis, confessam-se e voltam a estar de consciência tranquila. O problema é que esta forma de viver a religião não liberta, não traz alegria, não enche o coração de paz. Também não ajuda a abraçar a religião de Jesus, a religião do amor. As leis, na sua rigidez de pedra, deixam pouco espaço para o amor, a misericórdia, a compaixão. Era esse o problema de Jesus com a religião das leis e com os fariseus, os arautos dessa experiência religiosa. E nós? A nossa vivência religiosa está presa a leis que balizam tudo aquilo que fazemos e dizemos, ou é a religião do amor, da tolerância, da misericórdia, do Evangelho, da abertura de coração aos desafios sempre novos de Deus?

“Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”, diz Jesus, citando o profeta Isaías. Esse é o risco de uma vivência religiosa que assenta na simples repetição de orações decoradas, na mera reprodução mecânica de respostas não assumidas interiormente, em hábitos e gestos rotineiros, em tradições fixas e imutáveis, num aparato externo que não envolve o coração e uma clara opção por Deus e pelas suas propostas. A nossa forma de viver e de celebrar a fé tem alguma coisa a ver com isto?

In site dos Dehonianos