Niceia: A clarificação ou o início do cristianismo de Estado?*

Niceia: A clarificação ou o início do cristianismo de Estado?*

Precedido por sangrentas perseguições imperiais, a transformação do “seguimento” – diversificado e tenso, como era o judaísmo no tempo de Jesus – numa estrutura eclesiástica de poder, não foi isenta de divisões. Os tempos iniciais testemunharam uma discussão acesa.

Quando Constantino deliberou, no Édito de Milão, em 313, a liberdade de culto para todos os cidadãos do império – acabando, na prática, com a perseguição dos cristãos, integrando-os no status imperial –, abriu-se também caminho à clarificação de uma evidência: se o “seguimento” de Jesus começou na pluralidade, esta seria uma contingência de todos os tempos.

Historiadores entendem a intromissão de Constantino como o primeiro passo no fim do “seguimento”, para se dar início à era de uma nova religião. O “mundo” romano, assimilando culturalmente a tradição bíblica – por sua vez influenciada pela cultura helénica, mesopotâmica e egípcia –, revogaria a tradição politeísta e assumiria o monoteísmo. Na sequência, este monoteísmo esqueceria mais tarde a sua dinâmica plural e acentuaria um desígnio teológico pontuado pela filosofia, entre a Razão e a Revelação, “Atenas” e “Jerusalém”.

Se o pensamento grego, na sua conceptualização filosófica, confrontava o Uno com o Múltiplo, problematizando e perspetivando a interrogação, a Revelação e o conceito da redenção cristã emergiram das catacumbas para fazerem o caminho de um convicto proselitismo.

 

Comunidades iniciais

Embora com momentos de alguma tolerância religiosa no império, pela proteção da Pax Romana, as comunidades iniciais de “seguidores” – primórdio da Igreja – passaram tempos apocalípticos. Às perseguições imperiais anteriores a Constantino, sucederam-se dissensões sobre o edifício dogmático e doutrinário. De gnósticos a blasfemos, monarquianismo a donatismo, tornara-se evidente que os bispos, as várias Igrejas por eles tuteladas e as novas comunidades cristãs não se sintonizavam.

Por razões de ordem administrativa e teológica, muitos “seguidores” de Jesus foram acusados de abandonar o “seguimento”. Textos anti-heréticos dos primeiros tempos da Igreja, demonstram a atenção dada ao problema, embora insuspeitos pensadores, como Jerónimo ou Agostinho, tenham elogiado a inteligência, o “ardor” e os “dons naturais” dos que conseguiam iniciar uma heresia. Onde se via uma perigosa ameaça, reconhecia-se também um sentido positivo. Até no posterior Édito de Milão, as controvérsias e os conflitos surgiam de forma mais ou menos localizada.

Com a liberdade de culto, as divergências alastraram-se, fragilizando o próprio império, e é neste contexto político que se dá o concílio de Niceia.
No século IV, a Igreja – mais influente a Oriente – debatia-se com um problema: como conciliar a divindade de Jesus Cristo com o dogma de fé num Deus Único?

 

Concílio de Niceia

O concílio de Niceia – primeiro concílio ecuménico – foi convocado em maio de 325 pelo próprio imperador Constantino para resolver uma grave crise interna na Igreja: a crise ariana. O próprio imperador, neocristão, substituiu-se ao bispo de Roma, Silvestre I [1], que não compareceu à chamada sem que tenham sido claros os motivos da recusa. Alguns historiadores defendem que era um protesto contra a convocação do encontro pelo imperador, outros asseguram que Silvestre I, em idade avançada, estava impossibilitado de viajar até Niceia, atual Iznik, Turquia. Terão participado no concílio mais de 300 presbíteros, diáconos e bispos. Silvestre I, que estaria já informado antecipadamente sobre a condenação de Ário, enviou dois representantes.

Ário defendia que Jesus Cristo não era Deus, não tinha a “mesma substância” de Deus, não teria coexistido desde toda a eternidade com o Pai. Não seria um Filho de Deus por natureza, mas um filho adotivo de Deus…

Esta doutrina era considerada por muitos bispos, uma heresia, incluindo o bispo de Alexandria, de onde era oriundo o sacerdote Ário, mas o arianismo, também graças à relatada capacidade de debate e persuasão de Ário, ganhara pujança e acabaria por dividir a Igreja entre os que acreditavam que Jesus Cristo era a segunda pessoa da Santíssima Trindade e os que acreditavam que Jesus era apenas um homem, embora a mais nobre entre as criaturas.

Entre os presentes em Niceia estava Atanásio, um diácono novo e companheiro do bispo Alexandre de Alexandria, que se distinguiu como vigoroso lutador contra os arianos. As perseguições e primeiras condenações locais à excomunhão dos arianos, anteciparam o desfecho do concílio de Niceia. Apesar do apoio inicial de influentes bispos, como Eusébio de Cesareia, historiador da Igreja, e Eusébio de Nicomédia, a doutrina de Ário foi mesmo condenada. Eusébio de Cesareia, depois de ter deixado de defender os arianos, surgiu como mediador e apresentou o Credo de Cesareia, que acabaria por se tornar a base do chamado Credo niceno. Na votação final sobre o reconhecimento da divindade de Cristo, apenas dois bispos não votaram a favor.

O concílio proclamou solenemente as bases do Credo: Jesus é “consubstancial” ao Pai – (…) Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado (…).

O triunfo da ortodoxia não seria pacífico. O arianismo prevaleceria pela mão de alguns sacerdotes, mas acabaria por se diluir. Seria anatematizado e os dois bispos que contrariaram a maioria do concílio, seriam exilados pelo imperador. A doutrina de Ário foi definitivamente abolida com a chegada ao poder do imperador Teodósio, que converteu o cristianismo em religião oficial do império, depois de Constantino iniciar a integração da Igreja no Estado, com legislação adequada e poder judicial para os bispos.

Os decretos conciliares seriam divulgados como decisões imperiais, integrando a nova religião oficial na vida política. No pensamento do imperador, o cristianismo universal ajudaria a construir um império universal.

 

Novo “mundo” cristão

Constantino foi o precursor de um novo “mundo” cristão e com Teodósio, o paganismo e as heresias passaram a não ser toleradas e o império, oficialmente cristão, permitiria fixar pilares na doutrina católica – universal –, embora se tenha mantido o debate sobre temas difíceis como a relação do Espírito Santo com o Filho, a chamada questão do “Filioque”, uma das causas do posterior (ano de 1054) cisma entre as igrejas do Oriente e do Ocidente.

O antijudaísmo cristão ganhou também um forte impulso no confessional império romano. Niceia foi, neste aspeto, um marco. Os posteriores concílios da Igreja acentuaram o afastamento das tradições e do calendário litúrgico judaico.

Em Éfeso, na Ásia Menor, os cristãos celebravam a Páscoa juntamente com os judeus, no 14.º dia da primeira lua [2] da Primavera [3] – 14.º Nissan [4] no calendário judaico [5] –, independentemente do dia da semana. Em Roma [6] e Alexandria [7], juntamente com outras igrejas, celebrava-se a Páscoa no Domingo subsequente ao 14.º Nissan.

Foi no concílio de Niceia que se resolveu o problema, impondo-se a celebração sempre ao domingo seguinte ao plenilúnio [8], após o equinócio [9] da Primavera. As diferenças de calendário entre Ocidente e Oriente fazem com que a vontade, entre os cristãos, de festejar universalmente a Páscoa no mesmo dia, continue hoje a não ser possível, apesar do esforço e da disponibilidade manifestada recentemente pelo Papa Francisco, como um dos objetivos do ano jubilar.

Na sequência de Niceia, ganhou forma uma questão que permanece: é legítimo um Estado confessional? É aceitável uma tão estreita ligação entre a Igreja e o Estado, ao ponto de se confundirem?

 

A Igreja, a liberdade religiosa e as religiões não cristãs

O clima inicial de divergência verificado em Niceia atravessa a história do ecumenismo e das relações inter-religiosas. Lumen gentium [9], Dignitatis humanae [10] ou Nostra aetate [11], são documentos que, no segundo concílio do Vaticano, iniciaram uma nova etapa.

Embora reafirmando que “a única e verdadeira religião se verifica na igreja Católica”, a teologia católica assiste a uma intensa discussão. Entre silenciamentos e incompreensões, a reação da ortodoxia balizou o debate, mas não evitou que a igreja Católica se tenha transformado numa plataforma de crítica teológica, sem preconceitos.

Francisco empenhou-se em reforçar o caminho do diálogo entre cristãos e com outras religiões, estabelecendo com as respetivas lideranças compromissos pela paz e pelo respeito, propondo “fazer coisas juntos”.

No sonho de uma ética transversal, o Papa Bergoglio desenhou um poliedro de expectativas para a experiência da fé cristã. Ao contrário de uma esfera, nem todos estão à mesma distância do centro. O “seguimento” é poliédrico e todos fazem parte do objeto.

A busca da verdade – alethea – é, hoje e sempre, a mesma que motivou as tensões iniciais. A tensão faz parte da história eclesial porque o “seguimento” de Jesus continua a ser um drama de interpretação, um bom drama de interpretação.

Se a laicidade abre espaço à possibilidade de debates com outras visões e leituras da tradição, da religiosidade e da espiritualidade, a dinâmica sinodal recria o espaço poliédrico e o tempo da oportunidade – kairos – para reavaliar o caminho e ressintonizar a Palavra com o mundo, sem amarras conciliares ou abusos de poder.

 

*Texto inicialmente publicado na revista Família Cristã, em 2010, e reatualizado.
[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Silvestre_I
[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Lua
[3] http://pt.wikipedia.org/wiki/Primavera
[4] http://pt.wikipedia.org/wiki/Nisan
[5] http://pt.wikipedia.org/wiki/Calend%C3%A1rio_judaico
[6] http://pt.wikipedia.org/wiki/Roma
[7] http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandria
[8] http://pt.wikipedia.org/wiki/Lua_cheia
[9] http://pt.wikipedia.org/wiki/Equin%C3%B3cio
[10] https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html
[11] https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651207_dignitatis-humanae_po.html
[12] https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html

 

Niceia 2025

Niceia 2025

A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e o Conselho Português de Igrejas Cristãs (COPIC) promovem uma celebração ecuménica nacional, comemorativa do aniversário do Concílio Ecuménico de Niceia.

Simbolicamente a celebração ocorrerá no sábado dia 14 de junho, véspera do Domingo da Santíssima Trindade, no qual as Igrejas celebram a doutrina da Trindade expressa no Credo. Terá lugar na Catedral Lusitana de S. Paulo à Rua das Janelas Verdes em Lisboa às 15h e estarão presentes representantes de diversas Igrejas e tradições cristãs presentes em Portugal e convidados oficiais.

A cerimónia é uma oportunidade de celebrar a fé comum dos cristãos conforme expressa no Credo formulado no Concílio de Niceia. A celebração desta herança compartilhada permite aprofundar a fé que une os cristãos em Jesus Cristo e reforçar o testemunho conjunto que visa a unidade visível entre os cristãos e o serviço à sociedade. O Sr. Patriarca de Lisboa, D. Rui Valério, apresentará uma reflexão sobre a dimensão ecuménica deste aniversário e o seu contributo para a unidade visível dos cristãos.

A liturgia da celebração oferecerá orações de intercessão, baseadas em escritos patrísticos dos séculos II a VIII, que são em si um chamado para um crescimento na fé no testemunho de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo no mundo atual. Serão lidos textos da Sagrada Escritura, proclamada a fé uma vez dada aos santos contida no Credo de Niceia e o Pai nosso será recitado em conjunto.

Todos são bem-vindos e convidados a participar num mesmo espírito fraterno de oração e ação de graças ao Deus Uno e Trino, fonte de comunhão e de amor.

Lisboa, 3 de junho de 2025

Contactos:
COPIC geral@copic.pt | Tel. 22 375 40 18 | www.copic.pt
CEP
cep.sgeral@ecclesia.pt | Tel. 21 8855 460 | www.conferenciaepiscopal.pt