
São Tiago Apóstolo
O calendário litúrgico assinalou esta sexta-feira, 25 de julho, o dia de São Tiago Apóstolo (também conhecido como Santiago Maior), um dos doze apóstolos de Jesus Cristo e uma das figuras mais veneradas do cristianismo, especialmente na Península Ibérica. Tiago era filho de Zebedeu e irmão de João Evangelista, ambos pescadores, e é muitas vezes referido no Novo Testamento como um dos discípulos mais próximos de Jesus, estando presente em momentos importantes da sua vida, como a Transfiguração e a agonia no Jardim das Oliveiras.

© RFerreira
Depois da Ascensão de Jesus, Tiago teria pregado o Evangelho em várias regiões, e há tradições que indicam que terá viajado até à Hispânia (atual Península Ibérica), nomeadamente à região da Galiza, para evangelizar. Segundo os Atos dos Apóstolos, Tiago foi morto por ordem do rei Herodes Agripa I, por volta do ano 44 d.C., em Jerusalém, sendo o único apóstolo cujo martírio é descrito explicitamente no Novo Testamento: “Por aquele tempo, o rei Herodes começou a perseguir alguns membros da Igreja. Mandou matar à espada Tiago, irmão de João.” (Atos 12, 1-2). Segundo a tradição, os discípulos de Tiago terão levado o seu corpo para a Galiza, onde o sepultaram, e, embora não haja confirmação histórica, tanto da pregação de Tiago no extremo ocidental da Europa como do transporte do seu corpo até à Galiza, a verdade é que fazem parte da tradição cristã ibérica.
A partir do século IX, a ligação de São Tiago à Galiza torna-se mais evidente, com a descoberta, no século IX, de um túmulo na Galiza, que se acreditava conter os restos mortais do apóstolo, dando força à tradição segundo a qual Atanásio e Teodoro, discípulos de Tiago, teriam transportado o seu corpo de barco pelo mar Mediterrâneo e depois pelo Atlântico até ao Noroeste Peninsular, mais precisamente à foz do rio Ulla, aportando em Iria Flavia (atualmente integrada no concelho de Padrón, na Galiza). Posteriormente, o corpo teria sido levado para um local chamado de Campus Stellae (“campo da estrela”), que viria a dar origem ao nome Compostela, a que se associa a lenda que diz que uma estrela guiou o eremita Pelayo, por volta do ano 813, até ao local do túmulo, o que foi interpretado como um sinal divino. Embora não haja comprovação histórica ou arqueológica para esta narrativa, ela está profundamente enraizada na tradição jacobeia e é central na origem mítica do Caminho de Santiago.

© RFerreira
O rei Afonso II das Astúrias reconheceu oficialmente esse local e mandou construir ali uma igreja, dando origem ao que hoje é a Catedral de Santiago de Compostela, que, a partir desse momento, se tornou um dos principais centros de peregrinação da cristandade, a par de Roma e Jerusalém, dando origem ao famoso Caminho de Santiago.
Homo viator
O conceito de homo viator, expressão latina que significa literalmente “homem viajante” ou “homem a caminho”, é uma metáfora filosófica e espiritual que descreve a condição existencial do ser humano como um ser em constante peregrinação. Este conceito adquiriu especial relevância na tradição cristã medieval, onde o percurso da vida era visto como uma travessia rumo à plenitude espiritual, ou seja, em direção a Deus. A peregrinação, tanto física como simbólica, constituía uma das mais marcantes manifestações dessa visão.
No plano filosófico e existencial, o homo viator é aquele que nunca está completo, que vive em constante movimento interior e exterior, sempre à procura de sentido. A vida humana, sob este prisma, é concebida como uma jornada marcada por desafios, escolhas, esperanças e provações. O filósofo francês Gabriel Marcel, um dos autores que mais profundamente refletiu sobre este conceito no século XX, via no homo viator a imagem do homem que caminha no tempo, entre a experiência do finito e a abertura ao transcendente. A viagem, para Marcel, é tanto física como espiritual e representa a incompletude da existência, mas também a sua promessa.

© RFerreira
O homo viator e a peregrinação
Na Baixa Idade Média, este conceito de “homem em viagem” ganhou uma concretização muito clara através da prática das peregrinações religiosas. Milhares de homens e mulheres, de diferentes estratos sociais, partiam em longas caminhadas rumo a locais sagrados como Roma, Jerusalém ou Compostela, que se tornou uma das grandes peregrinações da cristandade medieval, onde afluíam milhares de peregrinos que percorriam a pé longas distâncias desde toda a Europa até à Catedral de Santiago de Compostela. Estes trajetos físicos eram simultaneamente metáforas da jornada interior do crente. A peregrinação não era apenas um ato de devoção ou penitência, era, também, uma forma de entrar em contacto com o sagrado, de se afastar do quotidiano para reencontrar um sentido mais profundo para a existência.
O peregrino medieval era, por isso, a encarnação do homo viator: partia do seu lar com o objetivo de se purificar, de pagar promessas, de alcançar indulgências, ou simplesmente de procurar um contacto mais direto com o divino. O trajeto implicava sofrimento físico, incerteza, solidão, mas também comunhão, partilha e transformação espiritual. O caminho era ele próprio uma escola de virtudes: humildade, perseverança, fé.
A partir do período do Renascimento, devido às guerras, epidemias e mudanças religiosas, o número de peregrinos de Santiago foi diminuindo, sendo bastante reduzido nos séculos seguintes. No entanto, a partir do século XX, especialmente após os anos 1980, houve um renascimento do Caminho, tanto por motivos religiosos como culturais e espirituais.
A simbologia do caminho e Caminho de Santiago, hoje
O caminho como prefiguração da vida como uma via crucis (via-sacra, literalmente “caminho da cruz”, em latim), uma travessia marcada por provações em que o tempo adquire uma dimensão escatológica – o que importa não é apenas o momento presente, mas o destino final do ser – ainda que associada ao peregrino medieval nunca perdeu sentido e mantém o seu caráter simbólico, espelhando como que uma sacralização do espaço e do tempo, onde as paisagens, os encontros, os perigos, os monumentos não são apenas elementos físicos, mas partes de uma narrativa existencial onde o peregrino é protagonista e simultaneamente aprendiz.
Três acontecimentos contemporâneos que vieram confirmar a importância do Caminho de Santiago foram, em 1982, a visita de São João Paulo II, que se converteu no primeiro Papa da história a visitar Santiago, em 1987, a outorga do Conselho da Europa ao Caminho de Santiago do título de “Primeiro Itinerário Cultural Europeu”, e, no ano de 1993, o seu reconhecimento, pela UNESCO, como “Património Cultural da Humanidade”.
Embora profundamente enraizado no contexto medieval, o conceito de homo viator, a que se associa indelevelmente o peregrino de Santiago de Compostela, mantém a sua atualidade. Em tempos conturbados de globalização, migrações e crises de identidade, o ser humano continua a procurar caminhos, tanto físicos como simbólicos, para encontrar o seu lugar no mundo, em busca do sentido da vida no meio da incerteza, não se conformando com o imediatismo e o materialismo da sociedade contemporânea. É neste contexto que a popularidade renovada do Caminho de Santiago reflete essa sede espiritual moderna, mesmo em contextos não religiosos, comprovada pela alegria indisfarçável das centenas, por vezes milhares [1], de peregrinos que diariamente contemplam a Catedral de Santiago de Compostela, no fim de uma aventura, que é sempre o início de outra, pois o caminho permanece como uma metáfora existencial: caminhar é existir, e existir é transformar-se.

© RFerreira
[1] Estatísticas do caminho: https://oficinadelperegrino.com/estadisticas-2/
Se quiser ler mais:
- Para una comprensión cristiana del Camino de Santiago, Alfonso Carrasco Rouco
https://www.soluziono.com/shop/9788493833329-para-una-comprension-cristiana-del-camino-de-santiago-114031
- Peregrinos de Santiago, Luís Filipe Fernandes
https://www.paulus.pt/products/9789723020472?srsltid=AfmBOooRqnS8JHFzy-csMJyWM6jJ6Oo_BL8UnCQcfolDzK0EM09n2l6c
- Memórias de um Peregrino. Nos caminhos de Santiago de Compostela, Agostinho Leal
https://www.bertrand.pt/livro/memorias-de-um-peregrino-agostinho-leal/23579762?srsltid=AfmBOoqdUr8gQEOd9p6n0ivpMa9fijAK7psmvTTyI6a4zIWwmfMMY9b5
- Bom Caminho!, Josepe García Miguel
https://www.leyaonline.com/pt/livros/desenvolvimento-pessoal/bom-caminho/