A liberdade de abril não teve apenas peso político. Nascida das entranhas de uma guerra insustentável, com graves consequências culturais, sentidas ainda hoje, 50 anos depois do fim de um regime opressor, esta liberdade, sob o eixo da democracia constitucional, mexeu com todas as dinâmicas da vida, incluindo a vida religiosa. Mas há uma revolução que está ainda por fazer em Portugal: a forma de ver a religião e o fenómeno religioso. Cinco décadas depois, permanecem clichés, preconceitos e intransigências. A sociedade secularizada afastou-se da instituição religiosa e a Igreja católica, nomeadamente, carece ainda de redefinição no espaço e no tempo – a dinâmica de uma sinodalidade transversal, lançada pelo Papa Francisco, pode dar um grande contributo diante de paradoxos canónicos, hesitações pastorais, desafios doutrinários de corresponsabilidade, transparência e acolhimento nas diferenças.
50 anos depois, ainda há um grande caminho a percorrer para contrariar desconfianças mútuas. No espaço mediático, o fenómeno religioso é entendido entre dois polos: a visão meramente confessional ou a abordagem crítica. Muitas lideranças religiosas veem os jornalistas como potenciais inimigos.
Já na dinâmica académica, não faltam interessantes experiências que rompem este dualismo minimalista. Após processo lento e difícil, ainda em curso e atualmente sob ameaça, a liberdade de abril trouxe também a liberdade religiosa e, com a liberdade religiosa, a oportunidade de reforçar a autonomia do estudo e da reflexão sobre o fenómeno religioso e a religião, porque o fenómeno religioso e os dinamismos de crença/fé são inquestionáveis.
A constituição de uma Ciência, ou de Ciências, das Religiões resulta da laicização da sociedade e entra, livremente, no diálogo cultural, das ciências sociais e humanas, como esforço racional de entendimentos.
A velha perspetiva religiosa exclusivista deu lugar à liberdade de pensamento, à autonomia de abordagens, ao sentido do “indivíduo” como nova conquista que reorganiza e reconstrói estruturas, das comunidades mais vastas à célula das relações familiares. O fenómeno religioso requer por isso a atenção de pensadores transversais, multidisciplinares, sob o risco de se diluírem, de forma irrefletida e imprevisível, tradições de identidade e compreensão comunitária.
Se a religião pode ser impulsionadora da convivialidade, do sentimento de pertença comunitária e reciprocidade, exercendo o papel de refúgio derradeiro perante dificuldades ou reveses de esperança, a sociedade depende da coesão social, mas a coesão social deixou de ter, em tempos de crise, o azimute da prática religião. Vão valendo as plataformas de solidariedade direta ou indiretamente ligadas a grupos religiosos, da Igreja católica em especial. Não se estranhe, por isso, a proliferação de vivências satélite de proximidade, superstição e crença, promotoras de uma certa alienação, ou de devoções quentes, por vezes exacerbadas, muito focadas em experiências pontuais. Embora menos presente na sociedade secularizada, quem procura a dinâmica religiosa encontra sempre caminhos alternativos, uns menos desejáveis que outros.
Este contexto abre um vasto território de diálogo com distanciamento crítico, capaz de influenciar positivamente o próprio pensamento religioso. Sem amarras confessionais, aberto a outras disciplinas, da sociologia à ética, da antropologia à psicologia, o estudo do fenómeno religioso é particularmente importante para a paz social. Entre a filosofia e a história, a cidadania e a cultura, seria interessante, por exemplo, dar à Ciência das Religiões a dignidade de disciplina complementar, opcional e autónoma no ensino secundário. Ideia revolucionária? Esta é uma revolução por fazer. A religião não é só um assunto para religiosos, e o diálogo, com e entre religiões, acompanha a história das civilizações. Se cada um acredita apenas naquilo que julga saber, acaba por acreditar em pouco e pouco saber de si mesmo.
In Com Franqueza…, Paulinas Editora, 2015
(adaptado do texto originalmente escrito em 28/4/2013)