
O erro do copista, a viagem de caravana e a Ressurreição
Em plena Semana Santa, e para que este não seja mais um ano em que vivemos em modo “maratona religiosa”, quisemos refletir sobre o que é essencial na Páscoa. Claro que a Quaresma nos ajuda a mergulhar, desde logo, no mistério Pascal, mas quisemos deter-nos, sob uma perspetiva diferente, acerca do sentido da Ressurreição. Após a Vigília Pascal, por “hábito cristão”, costumamos, alegremente, proferir frases como «Aleluia! Ressuscitou!», mas… qual será o alcance que podem ter frases como esta que dizemos? O que é que significa, na concretude das nossas vidas e na vida da nossa família, ressuscitar?
Foi então que nos lembrámos de uma frase do Cardeal D. José Tolentino Mendonça¹ que tínhamos lido numa Páscoa anterior. Dizia o “padre-poeta” que: «Amar é dizer ao outro: tu não morrerás.» Achámos impressionante como é que alguém pode dizer tanto em apenas oito palavras e continuámos a ler o texto, com o objetivo de percebermos, qual pode ser, afinal, o sentido da Ressurreição. Naquele texto, relembra-nos D. José Tolentino Mendonça que uma das antífonas mais usadas no Tempo Pascal é: Resurrexit, sicut dixit. (Ressuscitou, conforme disse). Conta-nos ainda que um monge copista medieval alterou esta antífona, escrevendo: Resurrexit, sicut dilexit (Ressuscitou conforme amou). Et voilá… aqui está a chave do significado da Ressurreição: o Amor (sempre o Amor)!
A correria do dia a dia, o cansaço, a rotina, e as desventuras que vivemos fazem parte da realidade familiar, mas podem trazer à tona sentimentos como o desânimo, a desesperança, a fatalidade e a vontade de desistir. Contudo, sabemos também que a família é muito mais do que isto. Comparemo-la a uma viagem de caravana.
Uma das primeiras lições que podemos retirar desta analogia é o valor da companhia. Não vamos sozinhos. Se fossemos, chegaríamos mais depressa ao destino, mas não chegaríamos tão longe, ou seja, não teríamos um horizonte tão amplo, e que apenas conseguimos alcançar porque temos a companhia um dos outros e experimentamos a entrega, que faz tornar a viagem mais “rica”. É também importante garantir que ninguém fica para trás e, por isso, é preciso respeitar o ritmo e as necessidades de cada um dos viajantes (parar para descansar, para nos alimentarmos e para saciar a sede, por exemplo).
Nesta viagem de caravana – e também na vida familiar – há algo de dinâmico que está subjacente: a comunhão. De facto, em família, vivemos colocando tudo em comum e partilhando a vida e aquilo que somos (e isto não significa que cada um dos elementos da família não preserve a sua identidade e que não seja respeitada a sua individualidade). Esta comunhão vivida no seio familiar pode ser percebida, por outras palavras, como uma “rede de Amor”. É, de facto, uma rede que envolve sem estrangular, uma rede que ampara sem prender os movimentos. Esta rede, que é construída todos os dias sempre que decidimos (sim, o Amor é uma escolha!) que, apesar das dificuldades, não desistiremos. E esta é, para nós, a garantia dada pelo próprio Deus que diz estar connosco, para além de qualquer situação que pode ser encarada pelo “mundo” como uma derrota ou fracasso, ou seja, um qualquer tipo de morte.
E, afinal, não será esta a essência da Páscoa? Com a Sua ressurreição, Cristo mostra-nos que nunca é a morte (e não apenas a morte física) que tem a última palavra! O Amor vence, a morte não! Voltando à questão inicial, compreendemos, agora, que ressuscitar talvez não seja mais do que salvar o outro (na família ou noutra “comunidade de Amor”) da morte. É, mesmo na dificuldade, gerar vida (no sentido espiritual). É não permitir que a morte vença. É, no fundo, dizer ao outro: porque eu te amo, tu não morrerás!
Vivamos esta Páscoa na certeza de que ressuscitar não é algo sobrenatural, mas um desafio que Deus lança a cada um de nós e que está ao nosso alcance. Afinal de contas, para dar Vida, basta amar!
¹ Cardeal D. José Tolentino Mendonça, Homilia do Domingo da
Ressurreição do Senhor, 4 abril 2021. In Avennire (https://www.avvenire.it/)