
Cuidado com o “Amor Perfeito”
«A Alegria do Amor que se vive nas famílias é também o júbilo da Igreja.» Estas são as primeiras palavras da exortação apostólica Amoris Laetitia escrita pelo “nosso” Papa Francisco e apresentada no ano 2016, em pleno Jubileu extraordinário da Misericórdia. Será uma coincidência que uma exortação apostólica sobre a Alegria trazida pelo Amor na família seja apresentada num tempo favorável de vivência da Misericórdia ou haverá algo mais profundo que une estas duas realidades?
Como em tantos outros aspetos durante o seu pontificado, o que o Papa Francisco nos “oferece” na exortação apostólica Amoris Laetitia é a certeza de que as revoluções que mais importam – as do coração – não usam de força nem da violência. Estas não gritam nem se exibem, mas fazem-se de dentro para fora e por meio da ternura e do acolhimento. Neste documento, Francisco fala-nos de como o Amor vivido nas famílias faz destas pequenas “células da sociedade” autênticos agentes de mudança. Uma mudança que poderá transformar a Igreja numa Igreja Renovada, aberta a todos e «em saída», que atua e constrói (n)o Mundo e faz dele uma verdadeira «Casa Comum», onde não há espaço para sobrantes nem descartados, mas onde todos têm o seu lugar.
Nesta encíclica, o Papa Francisco descreve a situação atual das famílias, relembra alguns aspetos da doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família, fala-nos sobre o Amor conjugal e na família, aponta-nos o plano de Deus materializado em caminhos pastorais que poderão levar à construção de famílias fecundas e, por fim, lança um olhar misericordioso e convida ao discernimento face a situações que «(…) não correspondem plenamente ao que o Senhor nos propõe» (cf. Amoris Laetitia, n.º 6). O que mais nos impressiona é que a Misericórdia atravessa todas as páginas desta encíclica. Nela, o Papa Francisco consegue “olhar” para a realidade concreta das famílias de hoje sem a ignorar ou “mascarar”, mas também sem a diminuir e reconhecendo as suas potencialidades. Para além desta descrição da realidade, Francisco fala-nos do plano de Deus para a família e apresenta-o como horizonte e meta e nunca como “espartilho moral” que sufoca. Mais do que sublinhar a distância entre a realidade e o projeto de Deus, Francisco enaltece a aproximação que pode ser feita entre os dois.
A propósito desta forma misericordiosa de olhar, partilhamos um aspeto que nos marcou na leitura da Amoris Laetitia e que, de alguma forma, molda a nossa vivência em casal e em família. Poderíamos chamar-lhe «cuidado com o amor perfeito!».
Pois bem, se no início de uma relação, há “borboletas na barriga” porque tudo o que estamos a viver é novo e estamos em plena fase de paixão, à medida que o tempo passa, o relacionamento vai transformando-se, e o “entusiasmo inicial” constante vai esmorecendo. Isto é necessariamente mau? Achamos que não! Assim como qualquer organismo vivo, também uma relação amorosa muda. Porque a realidade e as circunstâncias mudam (exemplo: convivência conjunta; chegada dos filhos; alterações profissionais; o estado de saúde, …), e apesar de, na essência, sermos as mesmas pessoas, a relação vai acompanhando esta dinâmica. Se as “borboletas na barriga” desaparecem? Não! Apenas não acontecem a “toda a hora”. No entanto, é importante continuar a cultivar momentos «a dois» para, no meio da rotina, não nos “perdermos” um do outro e recordarmos o que nos uniu e continua a unir.
Com o passar dos anos e mantendo vivos o diálogo e o cuidado do outro, constroem-se novos sentimentos como o companheirismo e a sensação de paz e estabilidade. Tudo isto é muito pouco romântico, à partida, e diametralmente diferente do que a publicidade apregoa sobre o amor. No entanto, também aqui, somos convidados, mais uma vez, a olhar com Misericórdia:
«(…) É mais saudável aceitar com realismo os limites, os desafios e as imperfeições, e dar ouvidos ao apelo para crescer juntos, fazer amadurecer o amor e cultivar a solidez da união, suceda o que suceder». (cf. Amoris Laetitia, n.º 135).
Porque, no fundo:
«O amor de amizade unifica todos os aspetos da vida matrimonial e ajuda os membros da família a avançarem em todas as suas fases. Por isso, os gestos que exprimem este amor devem ser constantemente cultivados, sem mesquinhez, cheios de palavras generosas.» (cf. Amoris Laetitia, n.º 133).
A Amoris Laetitia reforça a convicção de que mais do que “famílias exemplares” com pessoas e relações “perfeitas”, precisamos (nós, a Igreja e o Mundo) de famílias cujos membros se olhem com Misericórdia. Assim, descobrimos que a verdadeira Alegria do Amor na família é sabermo-nos acolhidos porque somos continuamente alvo de Misericórdia.
Daniela e Nuno Pássaro