«Em vez de dar dinheiro ou bens alimentares, dê emprego.» A proposta do Bispo de Aveiro passou sem eco na época natalícia. Tem tanto de retórica minimalista como de realismo social, e enquadra-se na exigência de rever, na quase totalidade, os modelos de empresa, desenvolvimento e mercado (Caritas in veritate, Bento XVI, 2009), reafirmada há dias pelo papa Ratzinger, quando denunciou o «capitalismo financeiro desregulado» que aumenta o fosso entre ricos e pobres.
Vem à memória um equívoco, no debate mediático, e sobre o qual se exige um ponto prévio: caridade e solidariedade social não estão em polos antagónicos. Uma não é preferível à outra, a primeira carece da segunda para se completar, como a segunda não se compreenderá totalmente sem a complexidade da primeira.
Não havendo espaço numa pequena crónica para digerir as enciclopédicas reflexões sobre o tema – entre o ágape e a caritas, o afeto, a estima e o incondicional, ou entre o solidum e o solidus, a segurança, o inteiro e o interdependente –, entenda-se, como princípio, que a fé cristã sem caridade é um bluff, porque o Deus dos cristãos é Amor que se concretiza no amor ao próximo. Ao mesmo tempo, sublinhe-se que, sem relação ou responsabilidade mútua, o ser humano é incompleto. O «eu» é e compreende-se no domínio da interdependência11, não se realiza sozinho. O homem individualmente «não possui a existência do homem em si mesmo»12, encontrada felicidade em relação, num processo complexo que parte do «eu» solitário para construir o «nós» solidário, o «ser» para e com os outros numa reciprocidade que vincula, ideia desenvolvida pelo médico e psicólogo judeu Jacob Levy Moreno, quando teorizava sobre as relações interpessoais no fenómeno religioso. Nesta perspetiva, a solidariedade não é uma opção, faz parte da natureza humana, da dimensão relacional e racional, desenvolvendo ética e moral, aperfeiçoando e purificando a justiça.
Estamos perante um problema de conceitos. Tal como a prática da caridade não é mera assistência, não se confunda solidariedade com cumplicidade solidária. A solidariedade é herdeira da fraternidade prática e pragmática, podendo enquadrar uma natureza abstrata, as buscas e procuras transversais da existência, a fé e o dever perante a consciência da finitude humana.
Numa abordagem atual, o princípio da solidariedade afirmou-se na consciência coletiva, no azimute da justiça, autonomizou-se, na organização da comunidade, promovendo a «igualdade» e sustentando, por exemplo, o ideário do «Estado social».
Não se trata de um sentimento vago de compaixão, de emoção momentânea que procura resolver problemas agudos de privação, mas de um dever firme e perseverante que na organização social procura a raiz dos problemas, atenuando as causas do sofrimento e da injustiça, combatendo as razões dessa privação e garantindo a paz social.
Não deixa de ser curioso o facto de, nas narrativas bíblicas, a comunidade cristã embrionária promover, pelo despojamento, mecanismos de «igualdade». Não há que ter medo das palavras. Basta reler a construção ética de Paulo e a forma como o apóstolo, com os mecanismos da solidariedade, promove as primeiras plataformas ecuménicas. Acudir com urgência aos que mais precisam porque não há diferentes «debaixo do sol» da mesma fé, uma fé com claríssimas implicações sociais que, ampliadas culturalmente, criam uma identidade e um humanismo.
O arcebispo emérito de Milão, Dionigi Tettamanzi, entende que a solidariedade «confirma e explicita» a caridade cristã, «na sua expressão social e institucional»13. Sem o princípio da solidariedade, a caridade cristã limitarse-ia a um assistencialismo ocasional e não construtivo. O objetivo político maior de um cristão passa por combater as desigualdades sociais e defender um bem comum orientado pela virtude. É possível que estejamos diante de uma utopia social que carece, neste e em qualquer tempo, da filosofia e/ou da religião. Mas não vale a pena alimentar mais equívocos…
In Com Franqueza…, Paulinas Editora, 2015 (adaptado)
Publicado inicialmente a 16 de janeiro de 2013
[11] Cf. Martin BUBER, Eu e Tu (1923) [ed. port., Lisboa, Paulinas Editora, 2014].
[12] Cf. Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia do Futuro (1843).
[13] Cf. Dionigi TETTAMANZI, Não há futuro sem solidariedade (2009).