Há pouco mais de duas semanas, um amigo meu “voou” para longe. Já me havia comunicado antes que ia trabalhar para outro lugar e, em boa verdade, já muito antes disso ambos sabíamos que esse dia chegaria. Portanto, já tinha tido tempo para preparar o meu coração para a sua ausência, mas a semana que antecedeu a sua saída e o último turno que acabámos por fazer juntos foram muito duros.
É verdade que, porque o amo, sei que vai ser mais feliz, vai estar mais tranquilo, vai ter uma vida mais simples… mas também é verdade que dói! Dói a ausência. Faz falta a cumplicidade do quotidiano. Ficam omissos aqueles pequenos nadas que, entre pessoas que se conhecem verdadeiramente, fazem um dia normal valer a pena.
Será legítimo querer que nada disso se perca? Será lícito desejar manter imutáveis junto a nós as pessoas, as coisas e as circunstâncias que dão maior significado à nossa vida? Como dizer adeus ao que, inevitavelmente, vamos perdendo no decorrer dos dias?
Também por estes dias soube que uma amiga sofreu uma perda. Não importa explorar que perda foi, porque basta apenas compreender que doeu muito. Doeu, dói e continuará a doer por um tempo indeterminado, mas certamente o suficiente para deixar uma cicatriz. Esta minha amiga é das mulheres mais corajosas e capazes que conheço. Tudo o que sente mostra. E tudo o que mostra tem uma honestidade que poucas vezes encontramos. E não merecia viver esta dor! E não merecia, sobretudo, que esta dor a fizesse questionar-se a si própria. Não merecia desiludir-se tanto, entristecer-se tanto, endurecer-se tanto.
Sei que a vida é isto – este equilíbrio frágil entre o que perdemos e o que vamos ganhando; entre o que nos destrói um bocadinho, mas reconstrói a pouco e pouco. Mas gostava que ela, ela em particular, não tivesse precisado de se equilibrar neste trapézio.
Será legítimo querer que os que amamos não sofram? Será lícito desejar que as cicatrizes passem por eles levemente e não deixem marcas eternas? Como dizer adeus ao que um dia sonhámos que a vida iria ser?
Curiosamente, a meio da escrita deste texto, recebi uma mensagem de uma mulher, com quem me cruzei em contexto de trabalho, a dar-me notícias acerca da sua situação de saúde. Uma mulher da minha idade, com filhos da idade dos meus, uma vida profissional semelhante à minha, mas – ao que sei hoje em relação a mim mesma – com menos tempo do que eu para viver tudo o que ainda teria teoricamente para viver. Durante a semana em que esteve internada, fomos enfermeira e doente, mas é impossível não me identificar com a circunstância desta mulher e desta família que, perante a avalanche de questões que o diagnóstico traz, faz de tudo para conseguir, apenas e para já, chegar ao sopé da montanha. Das questões às respostas passa um instante, das dúvidas às certezas passa um instante. E o lugar da esperança neste instante é sempre difícil de encontrar. Mais até do que o lugar da esperança, o lugar do sentido é difícil de encontrar.
Tenho aprendido muito ao longo destes vinte anos de trabalho. Hoje sei que a vida é frágil e, tantas vezes, demasiado curta para se cumprirem sonhos. Mas também sei com toda a certeza que, independentemente do que dure e do que realize, a vida nunca é demasiado curta para se cumprir! Portanto, sei que uma vida que termina aos quarenta pode ser tão fecunda como uma que acaba aos noventa e esse deve ser um dos nossos grandes propósitos – que a nossa vida se cumpra, fecundamente, até ao último dia. Não obstante, nem imagino o que será viver com a certeza de que a vida vai acabar muito mais cedo do que contávamos e, pior, que vamos deixar os que amamos muito menos seguros/capazes do que quereríamos. E admiro profundamente as pessoas que, como esta mulher, vivem esta realidade a sorrir. Sem fugir do medo e da tristeza, mas a sorrir.
Será legítimo querer mais tempo para viver? Será lícito revoltarmo-nos com a finitude das nossas vidas? Como dizer adeus a tudo o que construímos e a todos os que amamos, perante a certeza do fim?
Fui pensando este texto na minha cabeça ao longo da Quaresma e comecei a rabiscá-lo no papel no início da Semana Santa. Estou a terminá-lo já depois da Páscoa. As perguntas que aqui deixo não são recentes. Têm-me acompanhado ao longo dos anos, ora numa espécie de cutucar baixinho, ora em gritos sonoros dentro do meu coração. E acredito que não serão de resposta única na medida em que a experiência de cada um dará resposta às inquietações pessoais que o acompanham. Mas sei que, para sossegarmos os nossos corações humanos, insatisfeitos e inquietos, precisamos de respostas. E as minhas, percebo-o agora, apresentaram-se secretamente em diferentes momentos precisamente ao longo da Quaresma que passou.
Acho que é lícito desejar manter imutáveis junto a nós as pessoas, as coisas e as circunstâncias que dão maior significado à nossa vida. As mudanças trazem sempre lutos. E devemos fazer esses lutos. Já vivi o suficiente para saber que, mesmo quando a vida nos leva para longe, há pessoas que já ganhámos de forma tão arrebatadora, que nunca mais as perderemos. Portanto, dizemos adeus na certeza de que serão sempre um bocadinho nossas.
Também acho que é lícito desejar que as cicatrizes passem pelos que amamos levemente e não deixem marcas eternas. Somos pessoas. A nossa vida ganha tanto mais significado quanto mais nos relacionamos com os outros. E é muito difícil deixar sofrer quem amamos. Mas também diz respeito ao amor deixar que o outro viva a vida que lhe foi dada viver. Com tudo o que ela traz. Acredito que podemos dizer adeus ao que um dia sonhámos que a vida iria ser. Porque se formos capazes de compreender a dureza dos acontecimentos da vida que efectivamente temos, também seremos capazes de nos entristecer verdadeiramente com eles, mas conscientes do privilégio de estarmos vivos, não nos demoraremos na tristeza.
Por fim, também acho que é lícito revoltarmo-nos com a finitude das nossas vidas. Porque dizer adeus a tudo o que construímos e a todos os que amamos, perante a certeza do fim, há-de ser de uma dificuldade muito próxima do impossível. Ainda assim, ouvi na homilia de Domingo de Ramos que «a novidade do cristianismo é sabermo-nos amados e devemos deixar-nos amar, porque quanto mais nos deixarmos amar, mais capazes seremos de amar os outros». E ouvi na homilia de Domingo de Páscoa que «a mensagem fundamental da ressurreição é recomeçar». Portanto, se a nossa vida se cumprir no amor e se fizer por um caminho construído com as tristezas das quedas, mas a esperança dos recomeços, talvez possamos ser eternos.
Precisamos de aprender a dizer adeus. Honestamente. De forma desapegada. Como quem larga. Porque essa forma de dizer adeus ensina-nos duas coisas fundamentais – estamos a despedir-nos apenas do acessório, porque o essencial permanece na memória e enquanto aí permanecer nunca morrerá; só dizendo adeus verdadeiramente seremos capazes de recomeçar e, dessa forma, faremos Páscoa nas nossas vidas quotidianamente.